Um Bacalhau à Brás... para o Braz!  
 
Conheci a Tânia há cerca de 6 anos quando resolvi fazer um curso de massoterapia. Fiz esse curso, não porque pretendesse trabalhar nessa área, mas por motivos pessoais: minha perna direita, devido a um acidente, estava com edemas e retendo líquidos e, por falta de tempo, eu não podia ir a uma clínica três vezes por semana fazer drenagem linfática e massagem, como havia recomendado o meu ortopedista. No curso aprendi, além das técnicas inerentes à massoterapia e estética, também  as técnicas de drenagem linfática, que comecei a aplicar na minha perna. Os resultados foram bastante positivos.

Voltando à minha amiga Tânia: era enfermeira, moça bonita, simpática, e gostava muito de conversar. Começou por ser uma convivência agradável: as segundas-feiras passadas na clínica, em Copacabana, onde o curso de massoterapia era ministrado; os almoços com os colegas do curso; os agradáveis tête-a-tête com ela, no barzinho, após as aulas; as trocas de receitas de culinária; as mensagens trocadas no celular no final do dia; os telefonemas depois do jantar só para desabafar as amarguras da vida; as compras no shopping, enfim, coisas que amigas gostam de fazer juntas.

Um belo domingo, a Tânia convidou-me para almoçar em casa dela. Conheci o marido, o Braz, e a irmã, a Vânia. A Vânia era uma moça muito extrovertida. Um pouco masculinizada no jeito de falar, estar e vestir, mas muito simpática. Era proprietária de um salão de beleza em Copacabana e estava com falta de profissionais no setor de Spa. Convidou-me para trabalhar no salão. Expliquei que não estava interessada, pois não fiz o curso de massoterapia para trabalhar fora de casa, mas apenas para proveito próprio. Além disso, eu lecionava idiomas, tinha meus alunos e nenhuma disponibilidade. Nenhuma disponibilidade e nenhuma vontade, confesso.

O domingo passou. Outros domingos passaram. A Tânia ficou doente, passei a visitá-la com mais frequencia e a amizade e a convivência com a Tânia, a Vânia e o Braz foi estreitando laços. O Braz, marido da Tânia, conhecia o meu país, Portugal, pois era neto de portugueses e foi várias ao Porto visitar os avós. Em nossos encontros conversávamos bastante sobre as nossas raizes, pelo que surgiu uma agradável empatia entre nós.

Minha amiga melhorou. Passou-se um ano. Passaram-se dois. Passaram-se três e os encontros com meus três amigos, Tânia, Vânia e Braz começaram a ser cada vez menos frequentes. Contudo, mantinhamos contato frequente via telefone e email. Um dia o celular tocou, era Vânia. Falou que estava com saudades, que gostaria muito de rever-me, e convidou-me para passar a tarde no salão: escova, corte, hidratação, unha (mão e pé), tudo por conta da casa. Ou seja, presente! Sabendo que nada cai do céu a custo zero, falei que naquela semana estava sem tempo. Vânia insistiu e acabamos por combinar para terça-feira da semana seguinte.

Cheguei ao salão na hora marcada e Vânia recebeu-me com abraços, dois beijos e uma euforia tal, como se a gente não se visse há uma eternidade. Achei um pouco estranho o segundo beijo que ela me deu. Não foi exatamente no meu rosto, mas, quase no canto da minha boca. Pensei que devia ser apenas impressão minha, pois ela era uma pessoa bastante extrovertida, se mexendo e se agitando constantemente, daí que o beijo tivesse sido dado, por descuido, sem qualquer intenção. Ledo engano!

Unhas perfeitas, cabelo hidratado, lavado, escovado, procurei a Vânia para me despedir. Uma funcionária falou que ela estava no Spa me esperando. Bati duas vezes à porta e a Vânia falou para eu entrar. Abri a porta e, sem entrar, falei que estava indo embora e que fazia questão de pagar. Ela respondeu “Nada disso, querida, é presente meu pra você! Quer jantar comigo, hoje?” Não esperou que eu respondesse, segurou o meu braço e me encaminhou para dentro da sala. Fiquei um pouco incomodada com aquele gesto e, repentinamente, como num insight, todo o pressentimento que eu havia tido sobre os gestos “masculinizados” de Vânia se confirmou. De repente, tive a confirmação que o beijo no canto da boca que eu tinha achado “inocente”, foi intencional. Enquanto esse flash passava pela minha cabeça, Vânia tentou abraçar-me. Afastei-me e falei: “Vânia, não vai rolar! Por quatro motivos: você sabe que eu sou comprometida; não estou disponível; não estou interessada; não gosto de mulher.” Vânia respondeu: “Gosto muito, muito de você e respeito sua decisão. Podemos ao menos ser amigas?”  Sim, podíamos ser amigas sem, no entanto, ser amigas, falei.
Gostaria de ter falado mais, mas senti que isso só iria piorar a situação, já  por si constrangedora. Quando somos honestos desenvolvemos a força de caráter que irá nos permitir prestar um grande serviço a nós mesmos e ao próximo. E ainda que tenhamos que sacrificar uma amizade, um relacionamento, precisamos ser honestos. Sempre! 

Estava saindo do salão, absorta em meus pensamentos, sentindo que tinha perdido não a amiga, que nunca o tinha sido, mas um pouco de mim mesma, e dou de caras com a Tânia. Logo atrás vinha o Braz, seu inseparável e carinhoso marido. Em meio aos cumprimentos habituais, tentei sorrir, disfarçando o meu estado de espírito, mas não teve jeito, ambos notaram que eu não estava bem. Falei que não estava nos meus melhores dias e que pretendia pegar uma condução para ir para casa.
Com o regresso a casa veio também a paz de espírito. Coloquei uma musica suave e desliguei o celular pois pretendia ficar na tranquilidade do meu cantinho, sem nada nem ninguém que pudesse me aborrecer. Já bastavam os aborrecimentos daquela inusitada tarde.

Na manhã seguinte, sábado, quando liguei o celular, verifiquei que tinha 5 ligações e uma mensagem da Tânia: “Querida Ana, Braz e eu gostaríamos de almoçar com você no domingo. Pode ser em sua casa? Tânia. Bjs.”
Dos males o menor, pensei. Sim, uma vez que a Vânia não viria, eu receberia o casal. O Braz é bom amigo, sempre simpático, carinhoso, e gosta tanto das tradições do meu país, vou preparar uma boa receita de bacalhau para ele, pois como em toda casa portuguesa que se preze, não pode faltar bacalhau na mesa. Bacalhau e umas coisinhas mais. Estava decidido, iria fazer Bacalhau à Brás para o Braz. Tinha comprado recentemente duas garrafas de uma excelente marca de vinho tinto português, seria o acompanhamento perfeito. Fiquei animada com a ideia e estava longe de saber que deveria ter pensado não em preparar um Bacalhau à Brás não para o Brás, mas sim para a esposa do Braz.

Domingo, hora do almoço, mesa arrumada, almoço no forno. Visitas chegando. Tudo para ser uma tarde de domingo perfeita. Mais um ledo engano.
Já na mesa, degustando aperitivos, a conversa decorria agradavelmente. O Braz fez questão que eu falasse um pouco sobre as tradições culinárias de Portugal e eu, feliz como sempre fico quando me é dada a oportunidade de falar sobre o meu país e minhas raizes, discorri entre gastronomia, usos e costumes do povo lusitano, coisas tão indissociáveis entre si.

Momento crucial aquele em que o bacalhau chegou pelas minhas mãos à mesa e disse: “Entre as 100 receitas portuguesas tradicionais de bacalhau hoje eu resolvi fazer um Bacalhau à Brás... para o Braz!
Gostei de receber o abraço carinhoso do Braz. Gostei de ouvir os seus efusivos aplausos, enquanto falava: “Ana, nunca vi uma travessa de bacalhau tão bonita! Que delícia! Muito obrigado” Já da Tânia não gostei da cara feia que ela não fez questão de disfarçar. Senti que o clima esfriara e nem o vinho, servido à temperatura ambiente, como requer a etiqueta lusitana, conseguiu alegrar o ânimo da esposa visivelmente enciumada e emburrada.
Perdi a amiga. Perdi mais uma amiga. Será que eram amigas? Qual o valor de uma amizade?

Amizade sincera é a aproximação de dois seres que tem importantes afinidades, com vínculos respeitosos que buscam aproximação. Existe a paciência no escutar o outro, com sua verdade, com seu discernimento, pois possuímos a capacidade para o diálogo, a tolerância, o bom senso, o respeito mútuo fundamental. Ao longo da vida ganharemos e perderemos amigos, ganharemos amor e carinho e também desafetos e críticos ferrenhos. Perder um amigo de quem gostamos é horrível. Mas continuo a acreditar no ser humano.

Perdi a minha amiga Tânia. Já o Braz... bom, o Braz continua sendo o amigo carinhoso de sempre. Continuo recebendo suas lindas mensagens de bom dia. Ontem mesmo foi meu aniversário e um motoboy veio entregar-me um lindo presente acompanhado de um buquê de rosas vermelhas com um cartão que dizia:
  “...do Braz, com amor, carinho, admiração e saudade. Feliz aniversário.”

Perdi a amiga. Mas, como diz o velho ditado: “Vão-se os anéis ficam os dedos”.

 

Rio, 08/09/2016
Ana Flor do Lácio
Ana Flor do Lácio
Enviado por Ana Flor do Lácio em 30/04/2017
Reeditado em 30/04/2017
Código do texto: T5985941
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