A HISTÓRIA DESEMBARCOU
 
              O passageiro “A” segue tranquilo sua viagem. A poltrona ao lado está desocupada. A perspectiva de viajar sem companhia o anima. Puxa seu livro, estica as pernas e se espalha, aproveitando o espaço disponível. Antes de iniciar a leitura, põe-se a pensar como é desagradável compartilhar a poltrona com um passageiro tagarela. E se pergunta por que há tantas pessoas desprovidas de senso, incapazes de respeitar o espaço e o silêncio dos outros, sempre ansiosas por compartilhar suas estórias, seus problemas, suas intimidades, sua vida.
 
                  Abre o livro. Antes que comece a ler, o ônibus para num ponto, onde embarca o passageiro “B”. “A” fica inquieto. Olha à sua volta e percebe que há muitos lugares disponíveis. Provavelmente escapará dessa incômoda companhia que acabou de embarcar. Torce por isso. Inutilmente. Para seu infortúnio, o passageiro B senta-se ao seu lado. Mal contendo a irritação, ergue o livro à altura dos olhos para evitar o contato visual com o intruso. Contrai os músculos da face para não parecer amistoso e não incentivar maior aproximação.
 
                  “B” ocupa seu lugar espalhafatosamente, com um sonoro bom dia. Meu Deus, pensa “A”, fui premiado com um tagarela. Tentando não incentivar o papo, grunhe um inaudível bom dia entredentes. Sem sucesso. Imediatamente “B” começa seu matraquear.  Meu amigo, você não pode imaginar o que sucedeu comigo ontem regressando de ônibus para casa. Eu ocupava a mesma poltrona onde o senhor está sentado. Um pouco depois, sentou-se ao meu lado um tipo que parecia um jamaicano. Digo isso por causa de uma cabeleira desgrenhada aprisionada numa touca de lã colorida e encardida. “A” tentava concentrar-se no livro. Aquele falatório desenfreado ia entrando por seus ouvidos, assumindo o controle de sua atenção. Desistiu da leitura. Passou a dar ouvidos ao relato.
                      Feliz por ter conquistado o interesse do interlocutor, “B” prosseguiu. No início,  fiquei um pouco receoso. Afinal, o tipo não aparentava ser uma pessoa amigável. Mesmo assim, tentei entabular uma conversa. Ao virar-me para encará-lo, fiquei petrificado. Jamais poderia imaginar aquela cena. Sabe quando nem em seus piores pesadelos você se sente capaz de imaginar algo tão escabroso?
                            O interesse de “A” subiu às alturas. Já não queria perder uma vírgula daquele relato. “B” continuou. Embora meu fraco não sejam os filmes de terror, já assisti inúmeros. Vi cenas assustadoras de grande impacto. Mas, quê! Tudo fichinha. O que presenciei ontem supera de longe as coisas mais horripilantes. E lhe digo mais, enquanto vivo for, duvido que volte a me defrontar com algo tão assustador. E o mais curioso é que os demais passageiros pareciam nada notar. Ninguém para testemunhar comigo aquela cena dantesca. Não sei se o senhor já leu o Grande Sertão Veredas do Guimarães Rosa. A paciência de “A” inflava como um balão prontinho para estourar. “B” continuou. Ocorreu-me agora uma fala de Riobaldo, o personagem central da narrativa. "Viver nem não é muito perigoso?". Digo ao cavalheiro que por um instante foi essa a sensação que vivi. O perigo que de repente a gente pode correr numa trivial viagem de ônibus. Quantas possibilidades de alguma coisa dar errado no simples transcorrer de um dia, não é verdade? A gente sai de casa de manhã, feliz, fazendo planos para o almoço e Pam! Um assalto, uma bala perdida, um ônibus desgovernado, uma tempestade súbita e lá vai por água abaixo nossos planos e, quem sabe, a própria vida. Veja a pertinência da frase do Guimarães Rosa. Se o viver lá no meio do sertão poderia soar perigoso para Riobaldo, imagine aqui no Rio de Janeiro! Sobreviver aos perigos é uma tênue possibilidade.
 
                         Não aguentando mais tanta ansiedade, “A” gritou. Conclua essa história, meu amigo. O que, afinal, você viu? Diga logo, pelo amor de sua mãe, de tudo que lhe for mais sagrado. “B” olhou para fora do ônibus e deu um grito. Meu Deus, meu ponto está ficando para trás! E, aproveitando uma parada no semáforo, desceu do veículo desabaladamente, levando consigo o final da história.
 
                          Dentro do ônibus, mudo e perplexo, permaneceu sentado o passageiro A, como um pintor pendurado na broxa. No íntimo de seu ser, sentiu aumentar o ódio sem limites pelos malditos tagarelas.




 
Domingos Sávio ferreira
Enviado por Domingos Sávio ferreira em 29/04/2017
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