TRAGÉDIA NAS BODAS DE LOUÇA
Era Dia dos Namorados, um 12 de junho diferente dos demais para o casal César e Bárbara — aniversário de 22 anos de casados. Queriam comemorar em grande estilo suas bodas de louça. Afinal, depois de tantos anos juntos, permaneciam apaixonados como no início do casamento! Entretanto, o calendário não colaborara com eles naquele ano e o dia caíra, injustamente, numa quarta-feira.
Apesar de não poder festejar essa data, Bárbara acordou respirando estrelas, flores, beijinhos e corações. O marido saíra para o trabalho em Itaboraí, enquanto ela arquitetava mil planos para tornar aquele aniversário inesquecível!
— Ah! quer saber de uma coisa? Hoje, vou ficar em casa e curtir o meu dia! Depois, invento uma desculpa pro Dr. Renato e fica tudo certo!
E assim fez. Foi à bombonière, comprou bem-casados, trufas de vários sabores, bombons recheados com licor, torta de chocolate, bichinhos de pelúcia e almofadinhas vermelhas em formato de coração, simulando abraços, com a frase “Eu te amo!” Entrou num sexy shop, comprou hidratante corporal, uma lingerie vermelha sensualíssima e uma essência de pitanga para perfumar o quarto.
Ao retornar para casa, conversou com a secretária Viviane:
— Ai! Vivi, eu queria tanto fazer uma surpresa pro meu gatinho! Olha o que eu comprei! Você me ajuda a organizar? Tô tão nervosa!!!
— Claro, Dona Bárbara! A casa já tá toda limpinha, só falta colocar os enfeites que a senhora comprou.
— Então, enquanto eu vou ao salão de beleza, prepare um jantar à luz de velas, ponha aquela toalha bordada na mesa e arrume a casa com os enfeites que comprei. Quero tudo IM – PE – CÁ – VEL!!!
— Pode ir tranquila que, quando eu terminar, levo a Carol pra dormir lá em casa e deixar os pombinhos livres!!!
— Ah! Vivi, por favor, ligue para o telemensagem e encomende, para às vinte horas, um carro vermelho ( não serve Fusca ), enfeitado de balões vermelhos em formato de corações com os nossos nomes gravados em dourado! A mensagem é um texto do Vinícius de Moraes que se chama “Soneto de Fidelidade” e o fundo musical é, obrigatoriamente, “Unchained Melody”, a música do filme “Ghost”. Vai ficar lindo, não vai?!
— Vaaaaai!!! Se eu conseguir me lembrar disso tudo e, ainda por cima, falar esse palavrão em inglês...
— Está bem, Vi! Deixo tudo escrito e você soletra para eles, porque ninguém é obrigado a falar inglês, né?
A funcionária concordou com a cabeça e um sorriso opaco.
Após todas as recomendações, a patroa entrou no carro e, como se dirigisse nas nuvens, partiu rumo ao “LORRAYNNY BORY PERFECTY COIFFEUR’S”, no Jardim América.
O nome do salão já era por si só, o prenúncio de algum desastre. Sem falar da tabela promocional que ficava exposta à entrada, com alguns serviços: “Fazemos megarré, sombrancelhas de rena e Rejuvelhecimento”. No entanto, Bárbara estava eufórica demais, para perceber esses detalhes que a oralidade empresta à escrita.
Enquanto isso, como toda secretária que se preze, Viviane arrumava tudo reclamando:
— Palhaçada! Onde já se viu, deixar de ir trabalhar pra ficar “paparicando” marido? Eu num acredito em nenhum deles. Pra mim, nenhum homem presta! Mas, ela quer se aparecer e se iludir, azar é o dela! Só queria ver se fosse eu que faltasse pra ir levar a Sofia no veterinário. Ela ia fazer aquele escândalo, descontar do meu salário e ficar de cara feia a semana inteira! Agora, a idiota aqui vai ter que se virar nos trinta¹ pra arrumar essa papagaiada toda!!!
E parece que Viviane tinha razão. A patroa exagerara na dose: eram corações vermelhos de vários tamanhos, borboletas coloridas e lacinhos de fita para colar nas paredes; afixar uma faixa enorme com a frase “BÁRBARA E CÉSAR: AMOR ETERNO” à entrada da sala. Deveria também arrumar as rosas vermelhas e amarelas em muitos vasos e distribuí-los pela casa toda. Queria o quarto muito perfumado e aconchegante como na noite de núpcias. Exigiu-lhe que pusesse na cama a colcha vermelha que usara no dia do casamento e, sobre ela, arrumasse os bombons, as trufas, os bichinhos de pelúcia, as almofadas, uma garrafa de champanhe no gelo e duas taças de cristal!
Ah! E que não se esquecesse de pôr um jogo de toalhas novas no banheiro, bem como os sais de banho e o óleo corporal de açaí!
Chegando ao salão, procurou logo a sua cabeleireira favorita, Lorraynny Soft que, após cumprimentá-la efusivamente com os beijinhos na face, chamou uma das ajudantes, recomendando-lhe muito capricho para lavar os cabelos de Babi.
A seguir, Bárbara sentou-se para iniciar o seu "dia de princesa". E, falante como é, explicou à profissional como queria o corte, a coloração e a maquiagem. Contou-lhe que era seu aniversário de casamento e que estava preparando uma surpresa para o maridão!
Essa era a deixa de que Lorraynny precisava para fazer a sua catarse. Mal pegou a tesoura e o pente, já começou a desfiar o rosário de lamentações e lançar sobre a cliente toda a inveja recalcada:
— Ai! amiga tu que é feliz! Tu que tem sorte! Quem me dera ter um bofe que nem esse! Não é inveja não! Que Jesus te abençoa, tá?
— Obrigada, Lô! Eu sou muito feliz mesmo, graças a Deus! Mas, você não tinha um namorado?
— Eu, num dou sorte mermo com home, amiga... O Marcão, que já mora comigo deusde o carnaval, só sabe me batê e tirá meu dinhero. Ontisdonte mermo, saiu de casa chei de inguinorança e até agora num deu uma telefonema pra mim.
— Fala sério, Lorraynne! Parte pra outra, boba! Você é tão bonita, não deixa esse cara ficar te humilhando, não!
Nisso, Lorraynny começou a chorar e a tremer.
— Tu tem razão, amiga. O melhor que eu tenho a fazê é focá no meu trabalho.
A cabeleireira pediu que Bárbara ficasse de pé para acertar-lhe a franja. Penteou-lhe os fios por cima do rosto, mediu a altura e, quando deu o primeiro talhe, a cliente deu um grito lancinante e a tesoura ficou coberta de sangue. Ela cortara a ponta do queixo de Bárbara, tirando-lhe um pedaço que foi jogado com a tesoura sobre o tapete multicolorido de cabelos pretos, brancos, loiros e ruivos que as últimas clientes daquele dia deixaram.
Entretanto, ao invés de socorrer a cliente, Lorraynny começou a dar “piti”, a chorar, dizendo que a culpa era daquele cachoro do Marcão que a deixara nervosa daquele jeito. Saiu correndo, deixando que Bárbara esvaindo-se em sangue e sentindo dor, telefonasse para o marido vir buscá-la, o que demorou pelo menos umas três horas.
Ao chegar ao Hospital, César entrou com a mulher desmaiada no colo, toda ensanguentada e relatou à médica o que acontecera, Depois de recuperar os sentidos, Bárbara foi submetida a um verdadeiro interrogatório da doutora. E, por mais que afirmasse que fora um acidente no salão de beleza, a médica não acreditou naquela versão e chamou a polícia, acusando César de agressão. Por várias vezes, ainda insistiu para que a paciente denunciasse o marido.
— A senhora não precisa ter medo. A Lei Maria da Penha está aí para protegê-la! É por causa de atitudes como a sua que muitos covardes estão soltos por aí, agredindo outras mulheres!!!
César, que estivera em silêncio, ouvindo aquelas acusações, telefonou para o seu advogado que o aconselhou a processar a médica por calúnia, injúria e constrangimento.
Na delegacia, o casal prestou depoimento e foi liberado. Assim, com a louça quebrada, César e Bárbara não puderam comemorar suas bodas.Felizmente, Viviane fotografara tudo, até a mesa do jantar, antes de ir embora, para postar no Facebook.
Às vinte horas, o carro da telemensagem chega. Ouvem-se os estampidos dos fogos de artifício. Em seguida, a motorista desce do carro e começa a declamar o belo “Soneto de Fidelidade” ao som de Unchined Melody
Os vizinhos todos saem às portas, enquanto a pobre Bárbara, literalmente de queixo caído, abraça o marido, não como idealizara no auge de sua paixão matutina, porém com a ternura e o amor dos que não necessitam de palavras...
O que foi feito de todos os preparativos da festa não se sabe. Mas, o “Lorraynny Bori perfecty Coiffeur's” nunca mais realizou "rejuvelhecimento" em ninguém. Há na fachada uma placa:
DESCULPE O TRANS-TORNO
ESTAMOS DE FÉRIAS POR TEMPO ENDETERMINADO
Este texto foi inspirado em fatos.
¹Resolver algum problema ou concluir uma tarefa em trinta segundos.
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