Esquecer filmes

Esquecer filmes é minha brincadeira predileta. Não vou mais ao cinema. Tornei-me um ex-cinéfilo. Estou no interior e a sala de projeção se apagou há muitos anos. Ficaram as lembranças dos filmes do passado. Como no ciclo do ouro ou da borracha. Nesse período em que o cinema apresentou descenso, como fenômeno de massa, justo nesse ponto, dei início ao meu insaciável retorno em busca dos velhos filmes. Comecei procurando películas que deveria ter esquecido. Fiz uma lista enorme e gastei meu dia na feitura. Tudo num perfeito momento de vadiagem produtiva.

A nova história de Tom Mix foi o seu azar. Famoso durante o cinema mudo, porém ao ganhar voz, acabou perdendo seu lugar na fama. O tom da voz de Mix estava longe de ser admirável para os novos padrões. Esganiçada e feia. Com base em Tom Mix senti que poderia, se quisesse, ter engordado a prateleira da memória com todos os filmes que vi na vida em pouco tempo. No entanto estava me procurando no museu das imagens antigas. Foram os recintos que emudeceram. O teatro e a dança tentaram substituí-lo, mas sem êxito.

Os filmes para esquecer ocuparam o melhor lugar na casa vazia. Por traz de cada porta uma lembrança, um jarro, um sorriso de verdade, uma mentira, uma vergonha, uma culpa, um desastre, uma panela fumegante, um pai e um avô na grande trama. Todos vivos com seus lances de xadrez para burlar o inexorável. A resistência sobre a vontade louca de voltar. Retornar ao “tempo feliz” quando não se consegue um pouco de força para tornar as coisas aceitáveis. Na sala em que se projeta à dor o filme se desenrola. A dor se opera como retrato da esperança. O que restou para mim dos filmes de Bergman.

Retorno à casa de um amigo psicanalista onde Bergman permanecerá inédito e indivisível. (Naquela hora em que brincamos com os pedaços das lembranças). Lá está tudo de volta. No elevador, já tarde da noite, ainda havia tempo para perder nos lugares insólitos entre artistas que concorrem para um mundo melhor. O artista que se desenvolve na obra, evolui em busca de sentido, na desordenada etapa das representações.

Desço o elevador com a alma tranqüila. Apelo de paz e respeito à permanência, pois tudo é movimento. Podemos e não podemos descer o mesmo rio... Dessa impermanência devia nascer o respeito completo, intocável, um perdão simples e calado. A vida pela trama do mal com os olhos na saudade devia fracassar contra o desejo da piedade e do acalanto. Só isso deveria acalmar a humanidade diante da ferocidade dos conceitos. O drama deste exato momento que acaba de passar e que escoa no tempo. Foi quando todos os filmes de Bergman se reuniram no susto da sua ausência. Lembrei Fellini. O quanto lhe considerava o reverso de Bergman na mesma direção. Na mesma altura e diferente. Bergman com pinceladas de elegância sóbria e o gosto amaro pelo absurdo. O silêncio. Felline com seu colorido riscado pelos ruídos da rua distraindo a mesma desilusão. Ambos foram para mim os mais perfeitos complementos das noites de outono quando ir ao cinema era uma ordem poética. Cenas de Um Casamento Sueco é a introdução à filosofia do ego e seus desejos. Um permanente manifesto do poliamor numa sociedade marcada pela exclusividade afetiva e patrimonial. Por onde começam os rumores, as vozes, os cicios em torno do tema.

Eternidade que possuímos como o dom do encantamento no tempo em que podemos visualizar o mundo e a expressão mais completa.