Copenhague Zero Grau - Pizzaria, greve de fome
- Eu não faria greve de fome em frente à pizzaria. Isso me cheira a masoquismo... E como cheira esse tempero!
O casal dinamarquês, enquanto comenta o evento em derredor, escolhe uma mesa colocada na calçada e senta-se em frente à pizzaria na famosa Strøget, a charmosa rua de pedestres de Copenhague.
- Tá bom aqui?
- Ótimo.
Mas não foi isso o que pensaram os chilenos ali em frente. Tarde bonita, pombos na calçada. São cinco ou seis os grevistas, cobertores no chão, ainda bem que não faz frio. Estão deitados do lado de dentro dos jardins da igreja, próximos à porta principal. Há gradis entre a rua de pedestres e os jardins da igreja. Há mulheres do lado de fora, latinas e dinamarquesas, recolhem assinaturas e distribuem panfletos.
- A lasanha aqui é deliciosa e não custa caro.
- Claro, comida em restaurante italiano é o que há de mais em conta. E sempre se come bem. Que tal começar com um minestrone? É muito nutritivo. Você sabe quantas calorias...
- Você sabe quantos chilenos estão desaparecidos? Olha ali naqueles cartazes nos gradis da igreja. Onde estarão esses dois mil e quinhentos desaparecidos?
- Dois mil e quinhentos é muita gente. Será que matam e consomem mesmo os cadáveres, como nos diz a tevê sueca? Sabe, ontem vi um filme sobre torturas na Argentina, em pleno campeonato mundial de futebol. Revoltante! Será verdade que você é preso sem julgamento? Será que sua família fica mesmo sem notícias suas? Será que é crime discordar? Será que eles não podem ser contra o governo? Será?
- Será que o cheiro de comida não incomoda os grevistas?
Em frente da pizzaria, de costas para os gradis da igreja e de frente para os fregueses que comem nas mesas da calçada, o casal de músicos irlandeses. Cantam em inglês, acompanhando-se de duas guitarras de cordas de aço e de uma gaita, que a moça tem fixa em frente à boca, por meio de um suporte de alumínio preso aos ombros. As mãos estão livres para os acordes da guitarra, a gaita faz solos de entremeio. Belo arranjo. A caixa da guitarra no chão, aberta. Lá dentro, algumas moedas que as pessoas jogam. Maneira digna de pedir esmolas. E é mais um som na rua, entre os pombos.
- "All you need is love..." "If you happen to see the most beautiful girl in the world..."
A voz do rapaz é bonita, a moça vai firme nos solos de gaita. Gente para pra ouvir, faz roda, joga dinheiro, aplaude, comenta.
- Será que os irlandeses são mesmo temperamentais?
- Falam que sim. Já vi brigas deles aos montes. Brigam por nada. Sabe, uma vez conheci um do IRA... Quer desse molho aqui?
- Olha, isso é perigoso...
- O molho?
- Não, o IRA. Foi o IRA que matou Lord Mountbatten.
- Foi por acaso...
- O que? Acaso a morte de Mountbatten?!
- Não, o encontro com o cara do IRA. Quer me passar o sal? Foi lá no Café da Universidade, Universitets Kafe, lá onde os estrangeiros se ajuntam. Esse minestrone tá uma parada! Conheci também curdos, gente do ETA e um casal de asilados políticos, um chileno, de esquerda, e uma polonesa, só podia ser de direita. Casado mesmo, com filhos. Imagine!
É ainda verão em Copenhague, é incrível que setembro ainda permita. Nos outros anos, a esta hora, o outono já tinha se encarnado na gente, a alma se desfolhava e amarelecia. Este ano não. Um cheiro de verão corre ainda no ar (ou será de espaguete à napolitana?). A Strøget, rua de lazer, está ainda viva e viva a alegria.
- Como será que escondem duas mil e quinhentas pessoas? Só matando e cremando, não tem outro jeito. Diz que encontram filhos de desaparecidos em toda parte da América do Sul, uns nem sabem quem são seus pais.
- Como são cruéis esses latinos, hein? Você já leu a História de Roma?
- São temperamentais, não vê os italianos?
- É, começa do tempero. Desculpa a brincadeira, rssss.
Os irlandeses cantam, tem gente que para por eles, tem gente que para pelos cartazes, pela greve de fome. "Estamos solidários com os jovens que tomaram pacificamente a Embaixada da Dinamarca em Santiago. Estamos no quarto dia da greve de fome". Os irlandeses já descolaram a grana para o jantar de hoje, guardaram os instrumentos, fecharam as malas, já vão embora.
- Já pensou morar na Irlanda e ter medo dos católicos, se você é protestante; dos protestantes se você é católico; dos republicanos se é monarquista e dos monarquistas se é republicano?
- É tão bom viver na Dinamarca, não é?
- É melhor ainda ser dinamarquês. Isso aqui é um paraíso, e ainda tem gente que reclama. Tá vendo meu suspiro de alívio? É por estar aqui e poder falar o que quero... Lá vem a conta.
- Bom, é hora. Qual a minha parte?
- Quarenta e oito coroas e vinte cinco ore. Confere?
- Confere. Vamos? Onde você estacionou sua bicicleta?
- Det kan jeg ikke huske. Não me lembro, tenho que procurar. Até a próxima.
- Vi ses. Até.
(Copenhague, Dinamarca, 10/09/1979)