ACRAMAL II - UM APRENDIZ DE CANGAÇO E A NATUREZA VIVA

ACRAMAL - UM APRENDIZ DO CANGAÇO E A NATUREZA VIVA

II

autor: José Rodrigues Filho.

A luz suave e plácida da aurora resplandecia, vivamente, na cálida e morna manhã de setembro, deixando antever o belo dia que estava por vir. Assanhaços e Bem-te-vis faziam a festa matutina, acompanhados por Canários e Galos-de-Campina –também conhecidos por Cardeais- numa esfuziante algazarra, característica da viva alegria que emana desses pequenos seres que embelezam e completam as paisagens da Natureza silvestre.

O raro orvalho, caído durante a noite, umedecera apenas a face ventral das folhas do umbuzeiro, sob o qual nos abrigamos do relento e nos entregamos ao cansaço, após uma fatigante e espinhosa caminhada, durante todo o dia, perseguidos, que fomos, pelas tropas federais que de há muito andavam em nosso encalço.

A noite transcorrera sem outros atropelos. O torpor tomou conta de nossos corpos, tirou-nos o alento para apreciar os naturais fenômenos de uma noite sem lua no sertão. A tênue luz que nos chegava do cosmos nos era presenteada apenas pela imensurável quantidade de estrelas que flutuavam na vasta imensidão da abóbada celeste. Um pouco fora do normal, apenas a presença, junto às nossas mochilas, de uma Surucucu rabo-de-veludo que, enquanto dormíamos, instalara-se, confortavelmente, a poucos botes de nossos alquebrados corpos; todavia, obviamente, também cansada pela faina cotidiana, dormira placidamente, com a cabeça apoiada sobre a própria rodilha, numa demonstração inequívoca de que estava em paz com a Natureza e, possivelmente, com quem não lhe tratara com gestos agressivos.

Ao envolver-nos os primeiros clarões matinais, quando a Natureza deu início à sua canora sinfonia, estávamos prontos para partir. A serpente continuava dormindo, a sono solto, fato que não lhe dava mérito algum, pois havia dormido em serviço, enquanto dormíamos, não velando nossos corpos e deixando-nos à mercê de inimigos diversos. Estava descartada a hipótese de ela nos acompanhar na empreitada que fazíamos, portanto, por unanimidade, resolvemos partir sem lhe comunicar nossa decisão.

Que ingratidão! Soubemos, mais tarde, que essa nossa sentinela de retaguarda picara três dos cinco homens que nos perseguiam, tirando-lhes a vantagem que tinham sobre nós de cinco contra dois. Esses guias avançados tiveram que aguardar o restante da tropa, na tentativa de salvar os macacos picados, o que nos deu uma grande lambuja sobre os federais que, desatinados, perderam, mais uma vez, nossas cabeças, derrotados que foram por um simples desígnio da Natureza.

Amélia Rodrigues-Ba. Abril de 1986. Publicado no jornal Komunikando de Feira de Santana-Ba.

José Rodrigues Filho
Enviado por José Rodrigues Filho em 22/04/2017
Código do texto: T5977929
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