Prelúdio
Lençol. Tudo sempre começa com o despertar pela manhã. O corpo esguio se arrastando até o banheiro para lavar o rosto. Tinha sido um pesadelo dessa vez. Com ela. O dia começava bem. Não dormiu mais naquela madrugada. Depois de revirar incessantemente na cama, uma volta na cozinha, um copo de água para manter o costume. Ela estaria dormindo agora, talvez?
Quando se debruçou na sacada, a Lua ainda visível, aquele questionamento voltou do limbo. Por que os japoneses não estavam de cabeça pra baixo?! Entendia as teorias, força gravitacional e o que quer que fosse. Mas esse fato não entrava em sua cabeça, assim como tantos outros. Tinha dificuldade em compreender aquilo que lhe parecia não ter um motivo. Era uma daquelas perguntas que fazia e repetia pra si mesmo. A resposta devia estar lá. Como o dia em que ela iria embora. Devia estar lá. Ela havia dito que ele saberia quando chegasse a hora. Realmente estava lá.
Um brainstorming daqueles não era bem o que se esperar de uma madrugada de sexta-feira. Não para ele. Era o melhor dia da semana. O único que realmente prestava afinal. Finalmente a veria. O resto dos dias, um imenso compilado de desprazer, raiva e futilidades. O trabalho, um aglomerado de moralistas acomodados em busca de qualquer merda de média. Que ao verem uma oportunidade de obter privilégios sem tirar as bundas gordas de suas poltronas, se abocanhavam tal como cães. O prédio, um aglomerado de dondocas toscas que não paravam de tagarelar sobre qual filho era o melhor partido, qual tinha o cabelo mais lambido. Pro inferno com dondocas toscas.
Pelo menos ainda tinha o bar. Não necessariamente um deleite para os olhos, mas ainda melhor do que aquela rotina cortante de frivolidades. Uns tipos exóticos, além dos bebuns usuais nos quais tropeçava aleatoriamente. Um quê de dor de cotovelo, luz amarelada, e um garçom com o sorriso mais amarelo ainda. Homens e umas poucas mulheres largados aos cantos, com o mesmo olhar vago de quem teve um maravilhoso dia infurnado num escritório meia boca tomando qualquer porcaria na salinha do café. Ali era onde pensavam, pela primeira vez no dia. Era uma miséria agradável aos seus olhos.
Fora em qualquer uma daquelas mesas redondas que saiu do seu caminho. Conheceu-a numa noite quente, dessas tão quentes que só mesmo cerveja gelada pra ficar suportável. Se perdeu na primeira visão que tivera dos cabelos escuros e ondulados, lábios cheios e pequenos olhos negros, curiosos e de olhar forte. Se perdeu na mancha de batom que deixava no copo e no guardanapo. Nas conversas sinceras e despretensiosas sobre o que ele não conseguia discutir com outras pessoas. E em pouco tempo se perdeu em si mesmo.
Todas as merdas do dia a dia ficaram ainda mais desgastantes, tal era sua ansiedade. Mas elas tinham menos gosto de merda. Como um remédio diário que deixa de ser tão amargo. Ela preenchia as madrugadas, sempre bem humorada. Acordava varias vezes durante a madrugada. Sempre bebia um copo de água. Levava para ele também. Tinha qualquer aplicativo no celular, que gerava lembretes sobre as fases da Lua. E ela a observava fielmente todas as noites.
Mas ela também era incerteza e dualidade. Nunca deixava claro quando ia voltar. Aparecia uma noite sim, algumas não. As garrafas de cerveja sabem, com certeza, como ele esperava que ela chegasse durante a noite. Ela pediu pra que ele tomasse cuidado. Que não se apagasse demais à ela. Como se fosse adiantar alguma coisa. Bosta nenhuma. Ele dependia dela como se ela fosse o último raio de Sol num dia frio. Ela adorava o frio. Com o tempo, ele mudou a visão do próprio tempo. Da Lua, dos copos de água, do trabalho, do prédio, da madrugada.
Não a conhecia por completo. Mas conhecia bastante. Suas ideias eram voláteis e as vontades, supremas. Gostava do cheiro dela quando o encontrava na sexta à noite. Sua vida se tornara lugar onde ele esperava ansiosamente por vê-la. Uma grande sala de espera cheia de nada. Ela o avisara. E, naquela sexta-feira, ele pediu wisque. Naquele dia de madrugada complicada, o pesadelo anunciou o que viria. Ela não apareceu. Não mais.