MESMO NOS DIAS FRIOS ELE IA DE BERMUDA PARA ESCOLA

Era um dia normal como qualquer outro, a escola estava com o barulho de sempre, os alunos correndo, brincando, nada fora do comum. Mas naquele dia, especificamente na hora do lanche, eu presenciei um momento que por muito tempo vou lembrar, ou talvez não esqueça jamais. Presenciei a tristeza e a vergonha de um menino, tristeza por ser tratado como um incapaz, vergonha por se sentir um lixo.

Quando conheci Nick logo me afeiçoei a ele, era um menino inteligente e esforçado, às vezes do nada ele ficava nervoso, principalmente quando não conseguia entender a matéria, mas seu esforço deixava claro que ele queria aprender. Aos poucos fui conversando com ele e assim formamos uma amizade, sempre o ouvia com muita atenção, sabia que aquele comportamento escondia problemas internos mal resolvidos.

Foi num dia frio de garoa que tudo foi esclarecido, eu estava na sala do Nick, mas ele havia faltado, estranhei porque ele nunca faltava. Quando comecei a aula percebi que havia esquecido o livro em meu armário, fui buscá-lo. Quando passei na secretaria olhei para fora do portão e vi Nick, estava encolhido no cantinho do portão, não o deixaram entrar, ele havia chegado atrasado.

Me enchi de dó. Naquela garoa fina, ali sentado no chão de bermuda e chinelo estava um menino que gostava de estudar. Não pensei duas vezes e abri o portão e o chamei, conversei com a moça da secretaria e lhe disse que ele não podia ficar ali. Levei-o para sala e começamos a aula, passando alguns minutos Nick puxou a cadeira para perto da minha mesa e começou a falar, não falei nada, apenas ouvi. E aí conheci outro menino, um que me cativou mais e que fez com que meu carinho por ele aumentasse.

–Quero te agradecer professora. Hoje para eu vir para escola foi mais difícil do que os outros dias. Ontem perdi meu bilhete escolar quando saía do treino de basquete, pedi carona para ir para casa, cheguei tarde porque todos os motoristas achavam que eu fosse bandido e me negavam carona, até que um senhor acabou me dando. Quando cheguei em casa, minha irmã ainda não tinha aparecido e não tinha nada para eu comer, pedi um pouco de comida a uma vizinha, ela me deu mas vi que me olhou desconfiada. Estou tão cansado disso professora, preciso falar com alguém, pensei em tentar o suicídio de novo, mas no fundo eu sei que esse não é o caminho. Sei que um dia isso tudo vai passar, mas está difícil aguentar sabe.

– Achei que você morasse com sua mãe Nick.

– Não professora minha vida é muito complicada, minha mãe separou do meu pai quando ele foi preso, arrumou um marido que não gostava de nós, ele vivia nos expulsando e minha mãe ficava calada. Um dia ele agarrou minha irmã e eu fui para cima dele, minha mãe chegou na hora, mas em vez de perguntar para seus filhos o que havia acontecido ela perguntou para aquele monstro. Ele mandou ela escolher ou nós ou ele, mas ela preferiu ele, pois ela estava grávida, assim nos expulsou.

– Mas onde vocês estão agora Nick?

– Nós estamos vivendo num quartinho lá no Jardim Ângela. Minha irmã conheceu umas amigas no trabalho dela e elas indicaram esse lugar, lá é bem apertado, mas é bom. O que está difícil é que minha irmã não aparece em casa já alguns dias, daí não tenho comida e fico preocupado com ela.

– Nossa, Nick mas onde ela trabalha não tem telefone?

– Professora ela trabalha na rua lá no centro da cidade, ela é prostituta. Por isso estou preocupado.

– Ela está bem Nick, tenho certeza que logo ela vai aparecer. Você não está com frio nas pernas e nos pés não?

– Sim, mas minhas calças estão muito curtas e meu sapato furou, estou usando só no treino de basquete, para escola não da não, os meninos vão rir de mim, prefiro dizer que não sinto frio e vir assim. Sem falar que estou com muita fome e vim para escola para poder comer, é ruim sentir fome sabe professora, queria tanto ser normal.

Eu estava indiferente, não mostrei nenhuma reação de admiração, sei que os adolescentes odeiam quem tem pena deles, mas dentro de mim parecia uma cachoeira de lágrimas, era triste ouvir isso de um menino de quinze anos, e depois desse dia tudo fez muito sentido. Apesar da solidão, da fome, do abandono, ele não desistiu de ir à escola, sim ele ia para comer também, mas é fato que ele era um menino aplicado. Fazia as tarefas, mesmo sem computador ele buscava nos livros suas pesquisas, não imprimia nada, era tudo copiado a mão. Ele não desistia nunca, não sei se por escapismo ou por ver na escola a forma de mudar de vida. Depois daquele dia eu passei a respeitar mais esse menino, mesmo com a letra terrível, mas um aluno exemplar, diante de tantas dificuldades ele continuava, mesmo no frio de bermuda, ele não faltava.

E é aí que entra a falha humana, se não conhece a história do outro por que julgar, fazer comparações? Cada um tem a sua realidade, não sabemos as guerras e batalhas que os outros têm, mas não nos importamos, principalmente quando precisamos nos destacar e determinar o lugar do indivíduo menos reconhecido que nós.

Depois de alguns meses estou passando no corredor, era o intervalo, e vejo Nick correndo atrás de uma professora para lhe entregar um trabalho, ela para e pega o trabalho com as pontas dos dedos e na frente de todos vocifera com ele.

– O que é isso?

– Meu trabalho professora.

– Você deveria ter vergonha de entregar esse lixo de trabalho, não fez impresso e ainda para piorar fez em folha de caderno.

– Professora eu não tive dinheiro para fazer como você pediu, mas fiz e fiz com o que aprendi.

– Só vou aceitar porque está na data, mas já vou avisando que esse trabalho será avaliado de zero a cinco, se minha filha entregasse um trabalho desse eu faria ela comer.

Depois do show de horrores ela entra na sala dos professores com ar superior, como se tivesse dado a maior lição de moral do mundo, eu olho para ele e vejo a tristeza e a vergonha estampada em seu rosto.

Me revolto com essa situação, quem é essa mulher para humilhar, para fazer comparações de um menino que tem uma vida de cão com sua filha “burguesinha”, que estuda em escola privada, que não sabe o que é ficar sem café da manhã? Mas esse é o nosso sistema, julgamos os outros por nossos conceitos sem saber de suas verdadeiras histórias.

Nick terminou o ensino médio, não sei por onde ele anda, nem o que faz da vida, mas tenho fé que Nick se saiu bem, pois ele nunca foi de desistir.

Malika Cruz
Enviado por Malika Cruz em 17/04/2017
Reeditado em 17/04/2017
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