MEMORIAS DE UMA TARDE DISTANTE








"Meus tipos inesquecíveis" - Dona Lúcia Iarema
Abril/2011


É tardinha na coxilha...Um bando de quero-queros esganiça os trinados sobrevoando baixo o riacho onde os meninos pescam.
_O que querem vocês?...Pergunta um deles,fingindo-se irritado com aquela gritaria.
_Que tanto perturbam?...Vão,assim,acabar espantando os peixes!
E a cantilena prossegue. Insistente,implorativa...Quero!...Quero!...Quero!...
As  poucas  moradias encolhem-se atrás do arvoredo.Tufos de fumaça nas chaminés denunciam aquelas existências acabrunhadas pelos capões de mato.
E as espirais azuladas vão subindo lentamente,misturando-se à uma névoa fina feita tecido transparente,criando a imagem de toalha de mesa enorme por onde as araucárias escurecidas de penumbra lembram taças gigantescas erguendo-se num brinde à noite que se aproxima.
Reina a paz pelo campo...A paz da hora do Ângelus! Paz de criança adormecida,um quase estado de graça...Uma paz que entra pelas narinas no cheiro do capim que tomou o sol do dia,no aroma relaxante das marcelas,no perfume adoçicado dos cinamomos floridos.
Os sons que ainda se ouvem chegam de longe,embarcados no vento fresco,quase frio,numa aragem que prenuncia outono.
É um galo que canta fora de hora (vovó em sua sabedoria cabocla costumava dizer :"galo cantando fora de hora, é gente que morre ou moça que foge"),cachorros latindo distante,ecos de cantigas e diálogos de peões e lavradores em seus retornos.
Presos no curral,choram os bezerros de dona Lúcia...Berram a revolta de seus isolamentos,a privação do pasto lado à lado às suas mães.
O cárcere úmido e fétido dos estábulos tolhendo-lhes a liberdade espinoteada dos campos.
Subitamente ,uma voz grave e forte quebra o travo da tarde.
Ecoa pela campina,invade o potreiro...
Um brado que ordena, impõe, determina o momento de chegar.Um autêntico "toque de recolher" que apesar de toda a austeridade contida arrasta um “quê” melodioso,quase melancólico,invadindo o espaço:
_Tô!...Tô!...Tô!...Vêem Mimosa,Vêem...
Um assobio,um novo chamado,mais outro...
Aos poucos o gado vai saindo solene dentre os arbustos que se deitam,abrem alas,dobram-se em reverencia aos toques desajeitados das pesadas patas.
Na truculência de sua formas, seguem ruminando o que lhes resta da serenidade de um dia inteiro à sombra das caneleiras.
Disciplinadas,em fila indiana,as vacas cruzam o pontilhão.Uma a uma em sonolenta cadencia desfilam ante o olhar atento da proprietária.
Um chapéu de palha com abas largas encobre-lhe a pele alva da face eslava , por onde os safirados olhos preservam ainda os derradeiros clarões do dia.
Desenha-se em seu semblante o esboço satisfeito de um sorriso de quem percebe a missão cumprida.
Guincha na coxilha, o bando de quero-queros...Dona Lucia,enamorada daquela tarde,extravasa num longo e doce suspiro tudo o que lhe passa na alma.Feita personagem de algum conto de fadas,fecha a porteira.O ruído choroso do encontro da madeira e o estalar do chicote sobre a grama selam o fim do dia.
Meninos pescam às margens do riacho.A imagem de dona Lúcia é engolida pelo verde dos caquizeiros ao redor do curral.
A cantilena dos quero -queros prossegue sob um céu que começa a parir as primeiras estrelas,enquanto...
Os meninos  pescam.
Joel  Gomes Teixeira

Texto  reeditado
Preservados os comentários ao texto anterior:



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08/03/2015 01:18 - Iratiense THUTO TEIXEIRA
Obrigado Lourdes Bernadeth Berton,minha amiga do face,minha conterrânea,hoje em paragens longínquas mas sempre presente com seus comentários tão gentis que só fazem enobrecer a modéstia de minha alma.Grato por tão lindas palavras.


07/03/2015 10:44 - Lourdes Bernadeth Berton [não autenticado]
Como do barro o artesao pode fazer arte, das palavras voce é capaz de teletransportar pessoas no tempo e no espaco. Chego a sentir dentro do meu corpo um vazio escuro porque a alma, durante a leitura, foi lá no lugar do texto, sentiu o que a pele só sente no toque, viu o que os olhos só veem com a complexidade da vista, viveu, o que o o corpo só pode viver "estando".


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10/12/2011 21:03 -
Amigo Joel. Eu que sou carioca, e nunca tive a oportunidade de passear pelo seu Paraná tão querido.Diante a pujança do teu linguajar poético,consigo através da imaginação me transportar para o cenário que tão bem descreves,sinto cheiro,ouço o ruminar das vacas e o guinchar dos quero-quero.Parabéns pela prosa,cheia de lirismo e imaginação. Abraços do amigo Ciro


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10/12/2011 21:00 - Carlinhos Colé
Sempre a pintar com palavras os mais belos quadros. Parabéns, meu caro Joel!


09/12/2011 21:43 - lilian reinhardt [não autenticado]
Poeta da minha terra, sentindo a beleza dessa transcendencia de seu texto. Por onde passa seus olhos e coração derrama-se a poesia à nossa alma.Obrigada pela partilha. Belo demais, abço grande


09/12/2011 09:59 - Chico Chicão
Querido Joel do meu Paraná querido.Você transforma o bucólico em poesia pura.Só falta nós sentirmos o frescor do fim-de-tarde e cheiro característico dos mangueiros.Que pintura gostosa você escreveu.Obrigado.Fique na paz!


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09/12/2011 06:26 - Sunny L (Sonia Sancio Landrith)
Joel!Eu fico tão encantada com você que dá vontade de ir até Irati só pra lhe dar um abraço. Você está se esmerando a cada dia, melhor a cada conto. Por favor, guarde tudo pro livro. Eu sou a primeira a aplaudir você, mesmo que parta de uma pessoa simples como eu. Além do mais, "conviver" com você tem sido maravilhoso. Quando, há algum tempo, eu comentei você pela primeira vez, sabia exatamente que tipo de escritor estava visitando. Um abraço fraterno da sua amiga, Sunny


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09/12/2011 01:24 -
Ola poeta! Uma bela prosa interessante suave con a tarde. Parabens pela ccritatividade. Um abraço.


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08/12/2011 23:53 - EDNA LOPES
Imagens belíssimas produziu neste texto tão especial. Quase pude sentir o cheiro da campina, do esterco fresco...Quase pude ouvir os mugidos e o suspiro...ABRAÇO!


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08/12/2011 23:44 - Alice Gomes
Como que alguém recolhendo o gado pode se transformar numa coisa tão linda de se ler? Me dá uma revolta, às vezes, com esses escritores... rsrs