Terapia de Casais às Avessas

(DVD)

Dois filmes românticos – no melhor sentido possível

Pelos idos de 1996, acredito, foi que entrei em uma pequena locadora, numa época em que eu estava especialmente desinformado sobre cinema. Nas minhas mãos a capa da fita VHS do filme Antes do Amanhecer (Before Sunrise, 1995, do diretor Richard Linklater. Com Ethan Hawke e a francesa Julie Delpy no elenco – e somente eles dois). Foi aí que a simpática moça da locadora me bateu a dica: “Você não vai gostar desse aí, não. Eles só ficam conversando o filme inteiro...”. Malandro que sou, é claro que aluguei a fita. E levei também Antes da Chuva (Before the rain, 1994, de Milco Manchevswki). Este é um filme rodado na Macedônia, lindo, lindo, mas que nada tem a ver com o meu Antes do Amanhecer. É que a palavra antes parecia querer me dizer algo.

Chegando em casa, naquela tarde de inverno, vamos lá: pipoca, cobertor e pau na máquina. O filme começa com um trem – nisso ele já começa a capturar minha alma. A maior parte de minha vida eu vivi nas proximidades de uma ferrovia ouvindo barulho de trens, e sonhando com trens. E no trem do filme está o jovem casal: o americano Jesse e a francesa Celine. Ali começam a conversar, e só param pouco antes de subirem os créditos finais da película, ou melhor, fita magnética. E existe muito por trás do diálogo pós-adolescente deles, quando andam pelas ruas de Viena – coisa que fazem durante todo o filme. Existe, no fundo, um sonho comum a todos nós, que é encontrar, durante uma viagem, o grande amor de nossa vida. Mas grandes amores nem sempre viram felizes porta-retratos. E assim é com Jesse e Celine: eles não se casam, e nem mesmo terminam o filme juntos.

O filme é, no mínimo, revolucionário. Embora tenha sido pouco notado pelo grande público, cinéfilos e gente ligada à estética cinematográfica bateram palmas e tiraram seus chapéus. Imagine um filme em que o roteiro se baseia no passeio de um casal pelas ruas de uma cidade, e nada mais... Não estamos falando de um filme convencional. Aqui temos planos longos, sem a preocupação de desenrolamentos que “prendam” o expectador. Os diálogos são o fio condutor – auxiliados pela bela fotografia, obviamente. Antes do Amanhecer é um filme de idéias. É um estudo sobre o amor. Os questionamentos levantados pelos jovens do filme são os nossos questionamentos quando temos em torno de vinte anos.

Linklater filmou uma seqüência, Antes do Pôr-do-Sol (Before Sunset, 2005). Este sim, mais badalado que o primeiro. Afinal, no boca-a-boca, o filme anterior já adquirira certo status, apesar da modesta bilheteria. Isso contribuiu no marketing para essa continuação. Mas seria esta seqüência tão boa quanto o primeiro? Não sei. O primeiro é apaixonante. Mas Antes do Pôr-do-Sol é irrepreensível. Se a trama do anterior já chocava pela ousadia de transcorrer em apenas um dia, agora isso é elevado: toda a estória de Antes do Pôr-do-Sol se passa entre depois do almoço e o final da tarde. Isso mesmo. O trama se passa em tempo real. Os planos são ainda mais longos. Os cortes são mínimos. O efeito disso é um realismo ainda maior que antes.

Quanto a Jesse e Celine? Desta vez estão na cidade dela, Paris, onde o agora escritor Jesse vai fazer o lançamento de seu livro, que conta a estória de um casal que se conheceu num dia, e que naquele dia conversaram muito, fizeram amor na grama sob o luar, e nunca mais se viram. Celine, como se poderia esperar, leu o livro e foi ao seu lançamento numa livraria da cidade a fim de encontrar o autor, em suma, reencontrar o, provavelmente, grande amor de sua vida. Termos como este (“grande amor de sua vida”) jamais seriam usados por Jesse e Celine. Isso soaria por demais piegas a eles. Ainda mais agora, mais maduros, mais desiludidos, mais cínicos, nove anos depois do seu primeiro encontro. Então, eles se encontram e continuam aquela conversa de nove anos atrás.

Sobre o que conversam? Mais uma vez, sobre um pouco de tudo. Mais uma vez sobre o amor. No entanto não são flores o que dizem. Seu amor está mais para espinhos. Nesse aspecto o filme funciona como um tipo de terapia de casal às avessas. Acho até que casais em crise não devem assistir: podem não gostar do que vão ouvir. O realismo é mesmo chocante. Tudo bem, é um mundo diferente do nosso, alguém pode dizer. Não é todo mundo que viaja entre dois continentes como o fazem os protagonistas do filme, isso é bem verdade. Por outro lado, amor ainda é um tema universal. E as angústias e dúvidas do amor e da vida moderna pertencem tanto ao dia-a-dia de jovens belos do hemisfério norte quanto a qualquer pessoa do planeta. Portanto, se você ainda não assistiu ao filme, não se surpreenda se for pego, de repente, “discutindo a relação” após a sessão.

No meio de Antes do Amanhecer, durante a caminhada, eles deparam com um mendigo poeta que os oferece um poema por um trocado qualquer. Ele pede que digam uma palavra para que, a partir desta, improvise uma poesia. A palavra escolhida – aleatoriamente – é milk-shake. O poeta andarilho escreve então seu poema e o dá a eles. O poema é, na verdade, Delusion Angel, do poeta David Jewell – o que fiquei sabendo quando li os créditos ao fim. O poema é assim: “Ilusões à luz do dia / Cílios de limusine / Faça seu rostinho lindo / derramar uma lágrima em meu vinho. / Olhe em meus olhos / Veja o que você significa pra mim / Docinhos e milk-shake / Sou o anjo das ilusões / Sou o desfile de fantasias / Conheça nossos pensamentos – não mais os adivinhe / Você não sabe de onde eu vim / Não sabemos pra onde vamos / Estamos juntos na vida / como dois galhos num rio / sendo levados pela correnteza / Eu te carrego, você me carrega / Nossa vida pode ser assim / Você não me conhece?/ Você não me conhece agora?”. A poesia é estonteantemente linda, e funciona como uma espécie de síntese do filme. Jesse e Celine são mesmo como dois galhos num rio. E pensando no filme, e pensando nessa possibilidade de transformá-lo em poema, escrevi, eu, também alguns versos, me aventurando e fazendo valer da liberdade que insisto em ter. A poesia se chama Julie Delpy e é assim: “lá está ela: francesa despenteada / a se auto-fotografar em cada olhar calculado / com aquela cara de inocente – e inocente de fato / com o cinismo / e a traição das mais inteligentes fêmeas / sincera e cínica, é o que ela é / mas, fazer o que? se a vida é cálculo.../ se o amor é xadrez / se a viagem de trem de Celine / tem algo além: a busca do fim do túnel / a espera do novo a cada nova estação / a pele, cada nova sensação / os olhos, cada novo vislumbre / cada contemplação inquieta. / mas que fim tiveram Jesse e Celine? / com que bagagem mental / teria Jesse voltado pra casa? / ele, que escrevera um romance por sua causa / ele, que a amou desde Viena / ele, que a amou, secretamente – / e isso é segredo até pra ele – desde o trem... / ela, a mais linda das despenteadas.”

É bom lembrar: Julie Delpy é co-roteirista de Antes do Pôr-do-Sol e trabalhou também na trilha sonora, cantando uma bela valsa em inglês ao violão e uma canção em francês, que fecha o filme. Linda e singela a moça. Delpy não é uma mulher, é um antídoto.

Luciano Fortunato é cantor, compositor e escriba

Luciano Fortunato
Enviado por Luciano Fortunato em 07/08/2007
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