All Star Azul

Ainda me lembro do sorriso daquela mulher.

Chuva em São Paulo, transito parado, um mar de gente encharcada se amontoando em baixo de alguma meia proteção.

- Oi, tudo bem? Lembra de mim?

Sorri com todos os dentes que ainda restam em sua boca levemente torta.

- É, acho que sim. Como você está?

Um pano preto cobre suas costas enquanto as mãos atentam-se ao volante e o botão que aciona as portas laterais.

- Nossa que chuva estranha né?

Olhos tão cintilantes e esperançosos que nem a mais doce das crianças possui.

- É, pior que a cidade toda para.

Os olhos dele não brilhavam e ele não sorria de uma forma espontânea.

Uma corcunda em suas costas, cabelos negros opacos, cicatrizes de acne em estágio avançado por todo o rosto, uma pequena boca salientemente pendida para a esquerda, dentição em precariedade, um perfume doce almiscarado, misturado com chiclete de hortelã e tabaco.

Corpos aos montes se entreolhando enquanto enxugavam a água que escorria dos cabelos e empapava ainda mais as vestes já em declive pela chuva. Um monte de braços, cotovelos, punhos, mãos e dedos, tentando se escorar num mastro firme para que a pressa vinda do acelerador não os levassem para além de seus dois centímetros de espaço breve. E havia vozes, vozes que praguejavam, vozes que falavam de forma turva sobre relacionamentos heterossexuais e vozes que perguntavam como está fulaninho, o ex viciado em cocaína.

Perante ao caos que se aproximava da meia noite, uma mulher com uma juventude enterrada por um passado desuniforme surge...

Ajeita. Desajeita. Escorrega. Mantém a postura. Sorri. Esconde o sorriso. Deixa os olhos brilhares. Esconde o olhar. Tenta mais um assunto. Se cala. Afasta o pano preto. Deixa o pano preto encobrir. Olha as horas. Coloca os fones de ouvido. Começa a cantarolar uma música. Emudece. Me olha. Não me olha. Tenta mais uma apresentação. Sorri...

Diante de tantas expressões e tentativas de aproximação, pude ver no deslumbre da força daquela mulher uma invisibilidade escorrer pelos degraus, transpassar a porta, pingar no asfalto, encontrar a chuva e juntas escorrer dos bueiros aos córregos. Admito, nunca vi tanta vontade de viver, tanta vontade de ser notada, tanta vontade de ser amada e desejada como eu vi nas falas corporais desta mulher. Por um segundo pude sentir que a vida ainda tinha algum sentido e a humanidade uma parcela de salvação. Chega a ser engraçado como mudamos e nos reinventamos diante de outras pessoas, fazemos coisas sem sentido ou com um milhão de significados, porém atitudes estas que são tão claras e absolutas somente para nós mesmos. Fico a pensar então, será que o amor tem mesmo destas coisas? Sabe, dessas coisas de surgir através de um olhar, como se fosse amor à primeira vista? Ou através do fato de se sentir vivo e apto para amar um outro alguém e automaticamente este outro alguém te amar de volta, ou ainda mais, ou apenas simples percepção de que somos tão ingênuos e carentes que antes de sermos apenas um, temos a necessidade incansável de sermos dois?

Aposto que esta mulher irá se olhar no espelho antes de embarcar em sonhos e irá se sentir completa, feliz e amada. Afinal, um homem a olhou e ela olhou ternamente este homem e por frações de milésimos de segundos, ela se viu sendo feliz ao lado deste homem, os viu sendo completos e solícitos um com o outro numa idade lá longe, com todas as suas seguranças e estabilidades, com seus filhos e netos a correrem ao seu redor brincando e amando uns aos outros na mesma proporção que estes dois, ele e ela, ainda se amam.

Uma chuva forte ainda tornava a despencar do céu. Passei a catraca. Dei sinal. Desci. Apertei a campainha. O porteiro demorou a abrir. O elevador estava parado no décimo segundo andar. Pensei... acho que o amor tem dessas coisas, igual aquela música do Reis, sabe, All Star Azul?

Mvitoria
Enviado por Mvitoria em 10/04/2017
Código do texto: T5966747
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