ESCONDA A MANDIOCA

 (Maio/2012)






Meu pai adentrara à cozinha ,trazendo nas mãos um pequeno invólucro.
A expressão estampada na face chegava a igualar-se à cara de felicidade daquele que compra o seu primeiro carro,ainda que seja este um fusquinha ou um Chevete Hatch.
Quando o pacote foi aberto,pude perceber que a modernidade estava entrando em nossa casa.
Num incontido espanto,quase esbravejei:
Óh!...Uma lanterna!...
_Elétrica! Completou papai.E das grandes! com três pilhas.
Estávamos vivendo os últimos anos da década de 50 e o velho hábito das visitas noturnas pelas casas de compadres,parentes e amigos era o programa da época.Decretava-se naquele instante a aposentadoria da velha lanterna à querosene que ,até então,havia iluminado os muitos carreadores e capões de mato por onde perambulávamos pelas chamadas "horas mortas".
Quando a noite desceu sua cortina,estávamos prontos para um de nossos passeios.O destino era a casa de tia Eunice que morava um tanto distante e à quem estava em tempo de se “pagar uma visita”.
O teste da nova quisição correspondeu satisfatoriamente.
Focada no terreiro dos fundos foi de encontro ao par de olhos do gato da vizinha .Assustado,êste retornou ao facho de luz que lhe fora direcionado,duas pequenas esferas esverdeadas extremamente brilhantes como afirmativa de que a luz era realmente forte.
Os caminhos ermos daquela vila dos anos cinqüenta estavam à partir daí,reféns da luminosidade que lhes desvendaria segredos e mistérios noturnos.
A casa fechada,lanterna nas mãos...Algo fora esquecido:
_Ih! Esqueci a mandioca,diz meu pai num tom de preocupação.
(mandioca era o apelido que dera-se à um tronco de madeira muito resistente,que êle carregava em nossas incursões pela noite.Dado ao tamanho,servia-lhe como uma espécie de cajado,ainda que a finalidade principal fosse tão somente a defesa contra alguns ataques de cachorros bravios pela vizinhança)
De mandioca em punho,tomamos o rumo desejado.
Céu marejado de estrelas,algumas luzinhas frouxas escorrendo pelas janelas e,nas trevas, tres andejos conduzidos por aquele vagalume gigante.
Estávamos quase chegando ao destino .Mamãe acabara de proferir uma frase que eu conhecia muito bem:
_"Esconda a mandioca!"
Ela morria de vergonha daquele aparato que papai carregava.Assim,um pouco antes da chegada no local da visita ,por sua determinação,a mandioca deveria ser escondida em alguma touceira e só retomada por ocasião da volta pra casa.
A acolhida de tia Eunice,como de costume,fora das melhores.Conversas,risadas,apresentação da “moderna lanterna à pilha”,café com bolinhos,enfim...
Feitas as despedidas tomamos o rumo de casa.Era preciso apanhar a mandioca como garantia de um retorno sem problemas.
Procura daqui,procura dali,remexe-se em todas as touceiras e...Nada!
Papai, já irritado e nervoso,decide voltar sem a mandioca.
_Amanhã,logo cedinho,você vem aqui para encontra-la.disse-me.
_E bem quietinho, sem fazer alarde,ouviu bem? Completa mamãe.Nada de fiasco,viu!!!
Na manhã seguinte estávamos a revirar touceiras.
Cantávamos,assobiávamos,alardeávamos...Tudo no plural,até porque fizera-me companhia boa leva da piazada da rua do Fomento.
Diante de todo aquele alvoroço tia Eunice,tôda espavorida, aparecera na janela da casa.Ela que nunca soube da existência do cajado,muito menos do apelido do mesmo,leva um tremendo susto quando ouve a resposta à sua indagação:
_O que tanto procuram criançada?...Perderam alguma coisa?
Meu pai perdeu a sua mandioca,respondo-lhe em voz alta.
_Éh!...Estamos procurando a mandioca do pai dele! Grita um coral de vozes.
Com a maior cara de espanto,tia Eunice profere num tom meio cantadinho:
_”Crêndios Padre!” – Que traduzido deve ser algo parecido com Creio em Deus Pai,Deus do céu,Jesus me abane,ou qualquer outra amenidade do gênero.


PS:Como tenho hábito de preservar algumas quinquilharias que remontam à minha história,a “mandioca” existia até bem pouco tempo,cuidadosamente guardada num paiol que fora demolido.

Ao fazer um apanhado de coisas que eu deixava por ali,dei pela falta do objeto.Feita a descrição do mesmo para o senhor que fazia a reforma,este foi logo se adiantando:
_Ah! Aquele “Cambuí polidinho de véio”?
Sim,aquêle mesmo.
_Cheguei fogo!!!
Internamente minha reação foi parecida com aquêle vídeo do garoto que vê a sua formiguinha morta pelo irmão:
_Que dó!...Que dó!...Que dó!

Joel Gomes Teixeira

Texto reeditado
Preservados os comentários ao texto anterior:



28/03/2016 22:43 - Aloysia
Vim agradecer por sua gentil visita e generoso comentário ao meu texto e aqui encontrei boa leitura.O tema desta crônica é bastante parecido com o que eu gosto de escrever, reminiscências de minha infância e adolescência no interior. Uma bela composição, amigo poeta!


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26/03/2016 22:25 - Daniel Pereira S

Que beleza de conto, meu camarada. A maneira como você narra é de uma maestria muito grande. Confesso que não pretendia ler todo teu conto, pensei em ler apenas as primeiras linhas e parar, mas fui cedendo, cedendo até vi que não era mais possível parar. No final, fiquei querendo mais. Abração.

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17/10/2012 22:54 - Ione Rubra Rosa

Deliciosa crônica,Joel. Tempos bons que ficaram gravados na memória e no coração.Adorei.bjs no coração
01/06/2012 16:08 -
Querido, como é bom pousar as vistas num texto bem escrito e gostoso de ler! Parabéns! Um abraço!


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01/06/2012 10:39 - GRESMÉS

Que texto gostoso de ler! Uma bela história que retrata uma época já distante. Uma época em que uma lanterna elétrica era novidade. Mas o mais interessante é a tal mandioca: prefiro cozida e frita, de outra forma causa espanto mesmo. Parabéns

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01/06/2012 02:42 - Chico Chicão
Meu caro Joel das belezas polacas de Irati do meu Paraná querido. Releio esta crônica e me divirto mais uma vez.Não sou chegado a uma mandioca;deixo para quem goste,mas que é engraçado é. Obrigado.Fique na paz!


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31/05/2012 22:38 - Giustina

Oi, Joel! Que crônica maravilhosa, gostosa de ler! Pelo título achei tratar-se do aipim (que aqui no Sul chamamos mandioca... rsrsr). Tuas histórias são um bálsamo para a alma da gente, pois nos levam à infância, a um tempo bom que não volta mais. E concordo contigo: Que dó, que dó!