DO OBJETO “AMAR É...”

Pelas reticências das horas...

Dias desses, nesses movimentos que todos fazemos um dia, o de arrumar as gavetas do tempo, encontrei um objeto guardado há quase quatro décadas.

Trata-se dum “porta- trecos” de porcelana, em formato de coração, presenteado por uma amiga de faculdade, acredito que lá no início da década de oitenta, algo que foi lançado dentre inúmeros outros objetos grafados com o tema da eufórica onda das figurinhas do álbum AMAR É...

Quem lembra?

As frases me encantavam, pelas construções e pelas mensagens veiculadas em poesia simplória.

Então, eu me alternava entre dissecar as peças das aulas de Anatomia, estudar cada detalhe anatômico para a gincana mais difícil de que sem tem notícias no planeta, a das peças flechadas e capciosas de neuroanatomia do professor Picosse, o professor mais temido do mundo; e, assim, devorava aqueles livrões do Netter e do Gray, para nos mínimos intervalos me distrair com a caça às figurinhas do AMAR É...

Vez ou outra, algum colega me dizia baixinho-“olha, tenho essas repetidas, super difícil, você quer?”-claro que queria, então, rapidamente eu as colocava no bolso do jaleco branco e as trocava com as minhas em duplicata.

Talvez fosse algo catártico já que, ali e bem precocemente, eu entrava em contato com a realidade do “ser humano” de coração bem “formolizado”, o que me assustava um pouco, confesso.

Aquilo "não deveria ser coração de verdade"...e me sentia meio fora do meu lugar.

Eu ainda não havia visto nada...só aprendia pelo álbum que: “amar é...” e seguia encantada, só trocando figurinhas raras, difíceis.

Meus amigos sabiam da minha “fissura’ pelo álbum- o único que fiz na vida e o completei!; e digo que nunca sofri Bullying, nem por gostar daquelas figurinhas tão “nurds” ao mundo de hoje (embora haja um ativo mercado do álbum na Web)...tampouco por gostar de estudar, nem por nunca ter ficado “de porre” nas festas da turma, nem de recuperação, nem por nunca ter usado drogas, nem por tirar a nota mais famosa do pedaçao por parte do professor de anatomia mais exigente da Terra, apesar de, certa vez, não lhe ter respondido qual a semântica da palavra coronária.

“como a senhorita OUSA não saber o significado que deriva de “corona”, se todos a temos cravejada sobre os nossos corações?”

Todos olharam para mim...ninguém riu.

Era da época uma certa cumplicidade respeitosa com o todo, ainda que fosse engraçado.

Enrubesci na hora...e as minhas coronárias obviamente que dilataram e pulsaram muito, como se fossem uma coroa enxaquecóide na minha cabeça.

Ali, eu fazia um teste ergométrico emocional...mas só saberia disso bem depois.

"é que..professor eu..."- enquanto eu gaguejava ele ordenava: "e tire as mãos do bolso para falar comigo, isso é desrespeito!".

Não morri por aquilo, aliás me fortaleci: nunca mais coloquei as mãos no bolso ao me dirigir a alguém e cuidaria das "coronas" pelo resto da vida, com fluxo ou sem fluxo coronal, quiçá uma promessa feita ali, a mim mesma!

A bronca foi tão grande que eu nunca mais esqueci que coronárias “coroam” o órgão pulsátil, claro, símbolo rei do sentimento mais nobre do mundo, o tão ludicamente poetado no meu álbum preferido de vida.

O fato de ter encontrado o meu objeto “amar é...”, portanto, me reportou imediatamente a esse texto, frente à comparação daquele meu feliz tempo de estudante com o atual vil e mundano cenário de hoje em dia, por todos os lados, cenário que nem eu, sequer meu exigente e querido professor de anatomia poderíamos imaginar que um dia viesse a descoroar o “coração do planeta”, de forma tão impiedosa , com tanta dor, com tanto sofrimento social, através das cenas engendradas pelas mãos insanas dos psicóticos sem causa.

Olhar para as imagens da guerra da Síria, a exemplo, sinceramente, me faz uma interrogação, qual um nó contorcido nas coronárias sôfregas, dor anginosa, contínua e em aperto, frente aos tantos corações paralisados e dissecados pelos fluxos derramados das guerras surreais, desoxigenadas de piedade sequer momentânea, agonizantes pelo tudo que delas advém.

O que é amar, afinal? Alguém sabe?

Crianças que se foram e que nunca souberam o que é “trocar figurinhas” lúdicas ao invés de figurinhas de dor surreal; e tantas outras que seguirão nas reticências da vida, sem noção de como completar a proposta do meu álbum, salvo algum grande milagre lhes aconteça.

“ amar é...”. E agora?

Por uns instantes, voltei à sala de anatomia.

"Corações formolizados"- seriam eles os mesmos corações de hoje em dia?

"não, esses não devem ser corações de verdade"-repenso-.e eu continuo a me sentir fora do meu lugar.

Digo que acariciei meu “porta- trecos” como se fosse um troféu, li e reli a mensagem nele grafada, algo já em “fade” simbólico, como se viesse a nos resgatar de nós mesmos:

“ amar é deixar que seu coração fale mais alto que a cabeça”.

Sim, é verdade.

O coração sempre ao alto, coroado com a “corona” de nobre insígnia humanística.

Mas...e quando o mundo perde a cabeça porque já não tem mais coração?

Afastei a pergunta que me fiz a me responder silenciosamente: bobagem...e recoloquei meu objeto na gaveta, bem guardado.

Arrisquei:

AMAR É... TROCAR AS MELHORES FIGURINHAS PELO ALBUM DA VIDA.

Cá estou eu, então, a trocar mais uma delas.

Uma das raras e indeléveis, como devem ser todas as boas e figurativas lembranças.