palavra entre estranhos

Mendigo em pé, na calçada.

À duas esquinas do prédio avistou o mendigo assim que desceu do metrô e atravessou a rua em direção ao trabalho. Passos automáticos refreava m o pensamento naqueles pães, sacola à mão, a novidade do dia. Fubá, castanha do Brasil em massa amanteigada. Comeria três fácil, fácil.

Ô tenente, aceita um abraço.

Mas antes disso, ao entrar na padaria em frente à estação Butantã onde tomaria o metrô, nem mesmo o prazer da sexta-feira refreava resquícios de palavras ingeridas à noite, a pouca mastigação.

Desde a palavra tenente via-se duas falhas nas arcadas da frente. Totalmente desimportantes à medida que chegava o fim da oferta anunciada; num crescente, beethoviano sorriso, foram iluminados significado e significante.

À mesa, refeição da noite anterior, acompanhavam salada de folhas, tiras de carne, torrada de pão integral. Entre uma e outra, mastigação a proferir, palavra ferindo antes mesmo de deglutir.

Ao lado da banca, dessas improvisadas que vendem na rua bolo, pão de queijo do Brás e café com leite de garrafa – banca, aliás, que está ali sempre –, vendedora ocupada com um, talvez, dois clientes. Mendigo ao lado, aguardando um passante que lhe tocasse.

Noite entrecortada de apertos. Cólicas nenhuma do aparelho digestor. Mas do aparelho semântico, em massa de pesadelo.

A pressa no passo perfurou-se da luz proferida, houve horas e quilômetros... na corda do instante... no exíguo da calçada.

Pão é amor entre estranhos. Esse, sem freio de pensamento, convite o pôs padaria adentro.

Naquele lento segundo pôde ver que numa mão, copo de plástico com pingado, noutra, pão de queijo. Como poderia abraçar-me assim, em mãos restritas? Pensamento, sem freio, situado a três ou mais passos dali.

Qual a novidade do dia, perguntou à atendente. Imperdível, esse, saboroso, úmido mas talvez não tão leve, viu. Não me importo, estou para o peso. Pão entre colegas de trabalho pesa oposto.

Quatro ou mais passos dali sentiu-se num abraço brando, ausente do tátil – pudesse ficar o mendigo de mãos ocupadas e braços restritos em seu rico slow food. Nele fluía agora a palavra leve do abraço pronunciado pelo estranho que lhe tocou. Palavra é abraço entre estranhos.

Ivo Effer
Enviado por Ivo Effer em 05/04/2017
Código do texto: T5961709
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