Crase sem crise
[...] Assim que, sem atender à linguagem de Capitu, aos seus gestos, à dor que a retorcia [...].
As palavras acima são de Bentinho comentando a reação de sua esposa diante de um comentário que ele acabara de fazer: “... não é meu filho”. Quem já passou pelos bancos escolares certamente já ouviu falar dela, Capitu, a mulher dos olhos de ressaca; de cigana oblíqua e dissimulada. Será que ela traiu o marido? Quem é que sabe?
O verbo atender, grafado no infinitivo, aparece apenas em dois momentos em todo o livro “Dom Casmurro”. No entanto, ele sempre traz confusão quanto ao uso do acento grave. A maneira mais simples de satisfazer a gregos e troianos para este verbo é utilizar a seguinte regra: use a construção direta (sem a preposição “a”) para pessoa e a indireta (com a preposição “a”) para objetos e coisas.
Ao se ler novamente o trecho do livro, facilmente se nota que o verbo atender precede uma coordenação (orações interligadas) de maneira a evitar uma repetição: atender à linguagem de Capitu... atender aos seus gestos... atender à dor que a retorcia... O que nos leva a verificar que tanto a palavra linguagem quanto a palavra dor não são pessoas, certo? Portanto, os acentos indicativos de crase se justificam, uma vez que o verbo não se refere a pessoas e também por haver a evidência dos artigos em função dos substantivos femininos (a linguagem/ a dor).
Verdade seja dita: é bem mais fácil explicar a crase para o verbo atender do que tomar partido em crises de casal, não é mesmo?