O carnaval de Zezin e Dorival
No país do carnaval o ano só começa justamente quando ele acaba, e naquele ano não poderia ser diferente...
Mãe por que ele tem o nome de margarina...? –disse olhando para a mãe com aqueles olhos grandes e interrogativos próprios de uma criança de sete anos.
Nome de margarina...
É mãe... Dorival... parece Doriana...
Ah, menino você não tem jeito mesmo hein...
Não tem mãe, não tem... meu pai disse que ele é uma grande palhaçada...
Era apenas uma família normal no pais da anormalidade política... é sabido que o Carnaval é um momento raro em que as ordens sociais são invertidas e na Terra do céu de anil isso era levado muito a sério... seriam quatro dias, na verdade quase seis e, o mundo parecia se transformar num perfeito paraíso.
Não havia muita felicidade no lar de José, mais conhecido com Zezin do Samba, assim era chamado por seus amigos mais próximos, tinha uma certa compulsão por tudo o que era da Nação, e defendia com unhas e dentes, quisera um político ao menos um político, fosse acometido uma vez apenas, por essa compulsão que Zezin do Samba tinha pela Pátria Mãe Gentil, para ele nem tão gentil assim... vivia desempregado fazendo bicos, aqui e ali, mas não se dava por vencido... trancara a faculdade no terceiro semestre, dizia já ter lido tanto que era praticamente um formado e, se irritava quando alguém questionava esse fato, como não poderia deixar de ser, era muito ligado a política e ultimamente, devido os acontecimentos que vinham se abatendo sob o País do Futuro, andava cada vez mais irritado...
Quem é esse idiota todo engomadinho com essa cara de Botox –perguntou para si mesmo, embora a mulher estivesse na sala quando ele proferiu essa indagação – viu essa agora Nádia...
Ah, é um tal de Dorival...
Pra mim ele é mais um Doriana... com essa cara de família margarina...
Dizem que ele é bom...
Bom... ah, se a vida fosse entendida com base em bom e mau, tudo seria mais simples... a gente trucidava todos os maus e voltaríamos para o paraíso...
Ah, lá vem você...
Deixa de ser ingênua Nádia... esse Doriana é um empresário...
Ah, dizem que ele é todo nervosinho, não aceita ser questionado...
Sabe se ele passou algum tipo de resina no cabelo –sorriu debochado.
Sei lá, deve ter passado...
Sabia que ele pensava que a Lapa ficava na Zona Norte...
Nossa, ele mora aonde...
Deve ser numa bolha... só pode, é uma besta mesmo...
E acho que ele vai ganhar, amor...
É bem provável, o povo daqui é um misto de analfabetos políticos com uma pitada generosíssima de conservadores e reacionários...
Viviam na cidade mais importante da Terra do céu de anil de nome São Estivador, pois carregava a Nação nas costas, como diziam tais conservadores que nutriam um preconceito asqueroso em relação aos nordestinos. O que a maioria quase absoluta da população de São Estivador não sabia, é que a novidade eleitoral era de origem de uma família tradicional justamente dessa região... como dizia Zezin, um bando de ignorantes...
O tão esperando dia do pleito eleitoral finalmente chegara e, Zezin do Samba acordara mais cedo, ligara o som para ouvir um bom sambinha, enquanto fazia o seu dejejum, absorto em pensamentos, mas movido por uma certa esperança de que o Doriana não levasse a eleição. Para ele, havia uma coisa em comum entre carnaval e eleição, em ambos acontecimentos, o não necessário se fazia necessário. Nas eleições o povo que não queria saber de política e, não eram de maneira nenhuma incentivados a querer saber, se tornavam a peça mais importante do evento e, os meios de comunicação faziam a sua parte com propagandas encorajadores... O FUTURO DO PAÍS ESTÁ EM SUAS MÃOS, NÃO FIQUE EM CASA AMANHÃ VÁ VOTAR, EXERÇA A SUA CIDADANIA... e o mais impressionante é que todo mundo acreditava no seu poder de mudança... mas só naquele dia... no carnaval era a mesma coisa, pensava consigo Zezin, enquanto tomava mais um copo de café... é a hipocrisia generalizada na Pátria Mãe Gentil, os pobres como ele, que adorava samba e trabalhavam às vezes quase o ano inteiro, para que pudessem realizar o espetáculo, iam pros Sambódromos buscar um pouco de alegria, e se deparavam com o cinismo da sociedade dizendo que negro é lindo... que a comunidade –não pode podia falar favela –é importante etc... mas só nesses quatro dias... pois sem eles os negros, pobres, mestiços etc... não haveria carnaval... então negro e pobre nesses dias de FELICIDADE, eram lindos e necessários... mergulhado em suas reflexões, teve como que um sonho acordado e começou imaginar como seria se ele ganhasse...
...chiliquento acaba de inaugurar algumas casas populares, mas proíbe a manifestação espontânea dos concidadãos, já podia ver a chamada no Jornal da BOBO... tudo teria que ser ensaiado antes, várias caixas de coxinhas fornecidas pelos seus patrocinadores seriam enviadas para alimentar os presentes que para ele não passavam de alienígenas, o Dandi de Piratininga...
Hei, não vai agora... –perguntou Nádia.
Ah, já...
Tá sonhando acordado aí...
Ah, na verdade um pesadelo... –disse voltando de seu devaneio –já pensou como vai ser se esse sujeito ganhar...
Ele vai ganhar... –respondeu Nádia, insensível ao desespero do marido.
Aquela tarde fora muito triste para Zezin, chiliquento, como previra a mulher e todos os órgãos de pesquisa, levara a eleição no primeiro turno. E no dia seguinte, São Estivador estava esperançosa de uma boa administração, afinal o Doriana, alcunha dado por seus opositores, tinha chegado lá dizendo não ser político e, sim, empresário... fazer o quê, pensou Zezin, agora é esperar esse ano acabar de vez e, focar no Carnaval. Sua Escola tinha que ganhar dessa vez, já vinha a muito tempo chegando em segundo ou terceiro lugar... tinha que ser dessa vez, pois esse era o único momento que a vida para ele parecia lhe dar um pouco de felicidade.
O que restava no ano passara tão rapidamente que ele quase não percebeu, devido à grande crise que a Terra do céu de anil vinha travessando, às festas de final de ano chegara sem peru e sem chester, mas ele não se deixou vencer, munido de muita cerveja barata e frango assado, fingiu felicidade e chegou até a se embriagar em meio aos familiares, que na sua grande maioria votara no Chiliquento e não gostavam de carnaval.
Janeiro se arrastou como um soldado ferido num campo de batalha, as notícias acerca do Doriana, como eles costumava chamar, não eram as melhores, o que para ele não era novidade nenhuma... o prefeito de São Estivador num momento de desequilíbrio chamou um folião pra briga, disse um repórter no telejornal...
Ó lá pai o Doriana quis bater num homem só porque discordou dele....
É uma besta, meu filho –disse Zezin triunfante.
Será que ele vai ao Sambódromo pai...
Acho que ele é palhaço, mas nem tanto... eu acho...
Zezin olhou para o filho com orgulho e admiração, como se estivesse vendo o menino já homem feito discutindo política com ele. A muito tempo que Zezin vivia desiludido com os rumos da política da Terra do céu de anil, mas ultimamente, como costumava repetir nas rodas de amigos quando estavam tomando uma cerveja, ele dizia com indignação “o País está uma esculhambação geral...” todo dia aparecia um oportunista diferente para fazer o povo de palhaço e, o povo acreditava... o carnaval era o que lhe restava, embora o incomodasse o fato do seu grande amor, além da história –o carnaval –ter se prostituído se tornando um grande negócio de empresários... o capital acaba engolindo tudo, pensou consigo mesmo terminando de se vestir para finalmente ir ver a sua escola desfilar... era Carnaval, as pessoas estavam felizes, tudo era festa, sem tem o que comer, diga-se de passagem, mas tudo era festa no País do Fevereiro e até rimava com pouco ou nenhum dinheiro... tinha economizado alguns do último bico que tinha feito, seu filho nunca tinha ido com ele ver as escolas de samba, o menino estava eufórico, Nádia, que achava o marido às vezes crítico e ácido demais, não via a hora de se divertir um pouco... a chuva própria daquele mês do ano já tinha feito o seu trabalho, vários desabrigados por conta de deslizamentos e enchentes, dava o tom da felicidade... seria mesmo felicidade se perguntou Zezin... quando ouviu o filho gritar para a mãe...
Olha... mãe é o Doriana...
Não acredito pensou Zezin em voz alta, indignado sem acreditar o que estava vendo. A escola anterior a sua acabara de desfilar sob uma garoa fina e fria, que o deixara meio chateado, os homens da limpeza apontaram lá no começo da avenida, como se fosse uns pontos laranjas, estavam muito longe ainda para distinguir alguma coisa, mas alguns telões foram instalados em pontos estratégicos da avenida e seu filho fora o primeiro a notar o rosto botoxizado decorado com um sorriso patético...
Mãe por que ele tem o nome de margarina...
Não é de margarina, o seu pai é que colocou essa alcunha no pobre rapaz...
Pobre, pobre somos nós... ele é mais rico do que você imagina... –disse Zezin e emendou –é muita cara de pau querer tirar proveito da situação, não temos mais direito nem ao nosso carnaval...
Enquanto ele fala com Nádia e concordava com seu filho acerca do fato de que o chiliquento ter nome de margarina, de repente um murmurinho foi se formando e em questão de segundos se tornou um grande alvoroço, alguns assobiavam, outros proferiam os mais escabrosos palavrões, em meio a uma ensurdecedora vaia... à medida que a imagem do prefeito recém eleito de São Estivador, ia aparecendo nos telões... a vaia ia aumentando e, com a aproximação do chiliquento Doriana, Zezin tomado de total indignação, segurava uma garrafa de água e como que num surto, levantou-se e se dirigiu aos sanitários com a garrafa na mão, um sorriso começou a se abrir em sua face, estava apertado para ir ao banheira, fazia muito tempo, tomou o que restava da água e a encheu com urina, correu como se disso dependesse sua própria existência... quando chegou ofegante em seu lugar ao lado da mulher e do filho, Nádia percebeu a garrafa e o olhou pasmada...
Você não vai fazer isso, vai...
Claro, ele não quer se sentir perto do povo...
Mas, se alguém te pegar...
Não dá pra ver, está cheio de gente aqui, ninguém aguenta mais esta besta engomada...
Vê lá o que você vai fazer, eu digo que nem estou com você...
Num gesto, segundo ele, de humildade, Doriana vinha em trajes de gari fortemente alaranjado, ajustado num dos mais famosos estilista da cidade, na parte da frente, grandes anúncios dos patrocinadores... o barulho agora se tornara insuportável, era carnaval... Zezin se ergueu para que pudesse ter uma mira perfeita e lançou sua indignação liquida na direção de sua excelência o prefeito de São Estivador, o líquido se espalhou rapidamente por todo o uniforme do cinismo de Doriana, que franziu o rosto ao sentir o cheiro da indignação de Zezin, que ria a ponto de quase desmaiar, uma correria imediatamente se fez no local, e não se sabe ao certo o quê e, como aconteceu, em questão de segundos o homem de alaranjado cinismo desapareceu... fora o melhor carnaval da vida de Zezin...
No noticiário do dia seguinte, tanto na mídia impressa, quanto na televisiva a manchete era uma só...PREFEITO É AUVEJADO COM URINA AO SE FANTASIAR DE GARI... viva o CARNAVAL....