O dia do “Em nome...”
Naquele dia acordara relativamente cedo, pois não era um dia qualquer, finamente chegara o domingo e José, que poderia facilmente ser, João ou Francisco –ele tinha dom para isso –deixou-se cair da cama às 10hs30 da manhã e imediatamente sentiu um cheirinho de café fresco e, estimulado por esse aroma, dirigiu-se ao banheiro, que era colado à cozinha. Em meio a sua higiene matinal, do banheiro pode avistar Magnólia, que apesar do nome de flor, não exalava perfume algum e exibia um semblante enigmático que José não pode distinguir, pois não sabia se ela estava num misto de irritação e insatisfação com a vida ou com uma resignação velada, que dava a ela um certo ar de desdém de si própria.
José não costumava dar bom dia e disse apenas um oi, para mulher, que o olhou arqueando a sobrancelha direita com um riso de deboche disfarçado e respondeu... toma logo o café... já vou, disse José mirando a mesa com olhos de fome. O leite, o bule de café, pão e manteiga, aliás não manteiga, margarina para ser mais preciso, um produto que nem as moscas ousam consumir, mas José não era mosca, José era gente e gente como José, comia margarina, sim, e já sentado à mesa cortou o pão em dois e enquanto betumava uma das partes com o alimento rejeitado pelas moscas, sentiu a mulher roçar-lhes as costas... afasta um pouco pra eu passar...
A casa era extremamente pequena, os móveis pareciam muito mais amontoados do que propriamente organizados, além da insegurança alimentar, eles também sofriam de insegurança habitacional, termos que davam uma outra roupagem a situação de miséria em que viviam. Nas reportagens de televisão, faziam parte da categoria que era denominada de humilde ou simples...
Alô... oi, o quê...
É hoje liga a televisão... –disse a voz do outro lado da linha.
Hoje o quê meu... –respondeu meio tonto e pego de surpresa...
A votação do impedimento da presidenta...
Ah, aquela ladrona... –fez esse comentário com orgulho por se sentir entendedor de política, como era corrente por aqueles dias na Terra do céu de anil...
Sim... exatamente... dessa vez ela não se livra –disse triunfante...
Nos últimos meses na Terra do céu de anil, política era o assunto do momento, até mesmo quem não tinha a mínima noção das funções dos cargos do poder legislativo –e olha que não eram poucos –se julgava apto a proferir considerações as mais elaboradas sobre a política do país. Movimentos sociais tomaram as ruas numa panaceia de ideias que ia do absurdo ao estapafúrdio, do ridículo ao cômico. A Terra do céu de anil respirava política e seus políticos, mais conhecidos pela imensa maioria da população, como “um bando de ladrões”, se vangloriavam de terem feito “da Pátria Amada salve, salve”, o baluarte da democracia Latino-americana. O mundo inteiro assistia o desenrolar dos acontecimentos com perplexidade e estarrecido com tamanha cara-de-pau da classe política da Terra do céu de anil...
O que foi nego...-disse Magnólia ao marido.
É o João pedindo pra eu ligar a televisão...
Pra quê...
Vai começar a votação do impedimento da presidenta...
Ah, é... é hoje... Oxi... o que você entende disso –disse Magnólia não dando muito crédito ao interesse do marido.
Ora, vão tirar a ladrona...
Como você sabe que ela é ladrona...
Você não viu na televisão... –deu uma pausa, para engolir mais um pedaço do pão betumado com aquele produto indigno das moscas –e disse, ela enganou a gente...
Pra mim todos eles são ladrões...
Você não entende de nada... Má...
E você entende, não me lembro de te ver lendo um jornal sequer na vida...
Ah, vai... deixa eu falar aqui com o João...
Oi, fala João...
Já ligou...
Eu já vou ligar...
João que bem poderia ser José ou Pedro, pois o nome não faria nenhuma diferença, também sofria de insegurança habitacional e morava a duas quadras da casa do amigo. Insegurança habitacional era um termo que passou a ser usado corriqueiramente pela mídia na Terra do céu de anil, para designar uma grande parcela da população que vivia em condições miseráveis, mas como o termo miséria caíra em desuso devido seu caráter denunciativo e o grau de honestidade intrínseco ao termo, os homens da impressa munidos de humanidade voluntariosa e forte senso de justiça, resolveram a questão da má distribuição de renda, afagando de maneira pomposa, o ego daqueles que não tinham direito a nenhum tipo de orgulho. Juntando-se a esses, também existia na Terra do céu de anil, uma outra categoria, que estranhamente abarcava, praticamente todas as demais, tratava-se dos analfabetos políticos, doença que se alastrara por todo o país desde os tempos do Império, e como um cão fiel ao seu dono, não o deixava, jamais. Doença democrática e tipicamente brasileira, não discriminava, cor, raça, credo e, muito menos classe social. Por isso, naquela manhã na Terra do céu de anil, João, que poderia muito bem ser José, que isso não faria diferença alguma, ligou para o amigo entusiasmado e se oferecera como companhia para o almoço de maneira que pudessem assistir juntos aquele acontecimento que entraria para os anais da história da democracia mundial como o dia do “Em nome”.
Pronto já liguei... –disse José engolindo mais um pouco de café...
Vai ficar por aí mesmo...
Vou, por quê...
Estava pensando em levar umas latinhas pra gente ver junto a votação...
Pode vir, aí você almoça aqui com a gente...
Beleza...-respondeu entusiasmado o amigo.
José ao terminar de tomar o café, jogou-se literalmente num pequeno sofá que ficava ao lado da mesa e de frente para televisão, cujas parcelas estavam atrasadas a três meses, e tomado de um espírito cívico pediu à mulher que sentasse ao seu lado...
Eu vou assistir isso nada, eu tenho mais o que fazer... aliás vê se vai buscar um frango assado já que teremos visita pro almoço –disse com ar de reprovação e torcendo os lábios para o lado, como se fosse posar para uma foto no facebook...
Tá bom, Nega, vou e já volto...
Vê se não vai ficar bebendo e esquecer que o João vem pra cá com a Adélia...
Claro que não, vou e volto rapidinho...
A padaria ficava a algumas quadras de sua casa. No caminho José percebera que havia um certo clima de Copa do Mundo, guardadas as devidas proporções. Alguns mais empolgados e tomados de consciência política, um tanto anêmica –é preciso que se diga –, ousaram pendurar algumas fitinhas verde e amarela nos portões e janelas, no intuito de atestar sua solidariedade para com os congressistas que protagonizariam tamanho acontecimento.
José entrou na padaria e logo percebera que aquele não seria um dia qualquer, havia uma movimentação atípica, as pessoas pareciam tomadas de uma esperança política jamais vista na Terra do céu de anil. Dava pra sentir no ar que todos tinham necessidade de falar, se posicionar, proferir sua opinião, parecia que todos estavam tomados de gosto pela política. No caixa de longe, José avistou duas fitinhas verde e amarela. Alguns sentados ao balcão tomavam cerveja de olhos fixos na televisão. Vez por outra, ouvia-se comentários indignados daqueles que não se continham em apenas acompanhar a fala dos comentaristas. Tudo verde e amarelo, seria jogo da Seleção –interrogou-se, uma criança que esperava o pai sorver o último gole de cerveja.
Em sua cabeça José pensou –agora vai, agora esse país vai pra frente, estava na hora disso acontecer –e nesse momento sentiu uma certa emoção ruborizar lhe a face. Pegou o frango assado e dirigiu-se ao caixa envolto naquela névoa que pairava em todo o ambiente.
Quando chegou em casa a mulher surpresa com a rapidez disse um “nossa” desdenhosamente satisfeita e apontou o amigo e a esposa que estavam sentados no pequeno sofá e já faziam menção de se levantarem para o cumprimentar...
Oi tudo bem... –disse José dando um beijinho no rosto de Adélia. Virou-se para o amigo e perguntou...
E aí, trouxe as latinhas...
Já estão na geladeira, aqui não perde tempo não –disse dando uma gargalhada...
Fiquem à vontade –disse José ao puxar uma cadeira para sentar-se, pois só havia um sofá.
De repente ambos estavam vidrados na televisão acompanhando o desenrolar da votação, com uma cervejinha na mão, pois tanto José quanto João também eram filhos de Deus, e o que é mais interessante, discutindo política...
Da pia onde estava conversando com Adália e terminando os últimos detalhes do almoço, perguntou ao amigo do marido ...
João o que você acha de tudo isso...
Acho que ela roubou mesmo e tem que pagar...
Mas, roubou o quê...
Ué Magnólia, o país...
Mas isso é o que dizem...
Está em todos os telejornais todos os dias... vocês não assistem...
Olha, na verdade pra mim, acho que não escapa ninguém...
Foi comprovado, ela deu umas pedaladas e não podia...
Como foi essa tal de pedaladas... não tem nada a ver com bicicleta né... –e todos riram... e tudo na verdade parecia uma grande festa... o Senado estava empilhado de senadores em pleno domingo, cumprindo o seu dever de representantes do povo da Terra do céu de anil, que tinha uma forte tradição propedêutica, onde o judiciário era de uma capacidade tão engenhosa que fora capaz de criar um crime encomendado pelo legislativo, na falta de acusação melhor, e aplica-lo retroativamente, fazendo jus ao país dos doutores...
...em nome, da minha mãe, dos meus filhos, de minha vó, que nunca conheci... eu voto SIM... em nome de minha esposa, dos meus vizinhos, dos meus sobrinhos... eu voto SIM... e iam rimando tudo com “inho”, como se isso fosse uma nova regra da escrita poética. A cada SIM ou NÃO que aparecia no grande painel, era seguido de manifestações das mais variadas e inusitadas, mas nada superou a chuva de saliva sob a face moribunda da noite escura e truculenta que nos últimos tempos, ameaçava ainda que timidamente, descer sobre a Terra do céu de anil e, adquirira uma gama significativa de seguidores acometidos do mal da ignorância histórica. O espetáculo canhestro seguiu noite adentro... o lar de José, que poderia ser facilmente o lar de milhares e milhares de outros Josés, se encontrava mergulhado numa catarse absoluta, não se sabe se pelo efeito das latinhas de cerveja que foram se acumulando em cima da mesa desde o almoço ou se pela performance de cada congressista quando se viam em frente às câmeras no momento de efetivar sua posição. Certamente, ambos fora o motivo da total embriaguez em que se encontravam, os dois casais que continuavam acompanhando estarrecidos o hediondo espetáculo digno de uma Opera Bufa.
A princípio tudo fora motivo de grandes gargalhadas, mas à medida que as horas foram se passando, as gargalhadas foram minguando e uma certa tristeza, vez por outra visitava os olhos mais sensíveis a embriaguez da alma. A primeira a chorar, sem saber ao certo se era de vergonha da vida, de si mesma ou de vergonha alheia, fora Magnólia...
Para de chorar mulher...-disse José, não se aguentando de tanto segurar a própria emoção. Depois foi João, que tomado de um torpor, não se sabe se de raiva ou da sensação de que fora feito de besta –e não foi ele o único que se sentira assim naquele glorioso dia –depois num momento comicamente triste, todos se abraçaram e riram em lágrimas ao som do Hino Nacional, até que um silêncio de morte se instalara no interior do recinto e ambos, José, que poderia ser João, João que poderia ser Pedro ou Joaquim, Magnólia e Adélia que apesar de do nome de flores, não exalavam perfume algum, permaneceram atônitos de frente à televisão, contemplando a construção de um dos dias mais bizarros da história da Terra do céu de anil, o dia do “Em nome...”
(Em memória do Congresso Brasileiro)