ENIGMÁTICOS




(Diário de  minhas  andanças)
setembro/2011

fotos do autor 


Ele está sempre por ali,sem distanciar-se muito da casa em que reside ,numa esquina de um bairro calmo e silencioso.
No trajeto de minhas caminhadas,aos domingos à tarde, costumo tomar sempre o mesmo rumo até porque; residem no bucolismo do caminho algumas de minhas melhores lembranças então,passo à passo , aproveito para sorver na memória ,a leveza de um tempo que ficou pra trás.
Aquela figura enigmática insurge-se como parte do cenário num pequeno vale onde destaca-se uma quadra de esportes ladeada de algumas casas antigas,sempre fechadas, e um sobrado relegado ao abandono depois do brutal desaparecimento do jovem casal,donos da propriedade.
Em algumas ocasiões lhe flagrei a espiar a quadra vazia.
As mãos apoiadas na tela de proteção,um olhar fixo num ponto qualquer,alheio às tardes que morriam na pasmaceira do vilarejo deserto de gente.
Em outras,recostado ao muro da sua casa,tinha os olhos direcionados à imagem desoladora do sobrado por onde pichações e vidros quebrados dão o tom ao que fora no passado um lugar festivo e muito freqüentado.
A calçada de pedras irregulares , que circunda a quadra esportiva,antes repleta de carros estacionados entrega-se hoje ao abandono das sempre-vivas e o pontilhão que abria caminho às portas do estabelecimento,ruiu com as enchentes.
Do pequeno riacho corre agora um fiozinho d água entre os aguapés e, quando o dia esmaece , sapos oferecem um coaxar melancólico,como que solidários ao introspectivo senhor do vale.
Que estranhas lembranças ruminam seus pensamentos?
E esse olhar entristecido a reconstruir cenários na solidão das tardes?
Saudades do jovem casal?
Da alegria que morava no sobrado?
Da antiga estação de trens aos pés da ladeira,com idas e vindas,apitos e acenos?
Isso somente à ele pertence.
[Mistérios d´ alma deste ser “Enigmático”]
Prossigo na  caminhada.
O casario de algumas famílias abastadas mergulha na quietude do fim do dia.
Portões entre abertos, jardins bem cuidados,casas silenciosas...
Ninguém pelas ruas.
Respira-se um ar carregado de nostalgia.Uma nostalgia que tem cores e cheiros. Cores dos últimos raios de sol trespassando a torre da capelinha.Cheiro refrescante das acácias exauridas ao calor da estação.
Contorno as palmeiras perfiladas ao redor da escola e ,de repente, estou sobre um  conhecido viaduto.
À cada vez que cruzo por este lugar,instintivamente, costumo fazer uma parada rápida,meditativa...
É  como se  de repente,em minhas  reflexões,  um  comboio rompesse entre  o arvoredo,trazendo consigo as bagagens  de algumas ilusões que  deixei  um  dia  numa estação qualquer deste  caminho  chamado "vida".


Enquanto espero,vislumbro  à minha direita as sobras do dia que varam a torre da igreja encolherem-se entre as colinas por onde o verde vai tomando um tom escurecido .
À esquerda ,as paralelas da linha férrea desenhando uma curva acentuada que se esvai lentamente entre as arueiras.Alguns automóveis percorrendo ao longo de uma rodovia distante de meu campo de visão...Galinhas “de Angola” cantarolando em algum quintal pelas redondezas.
De resto,tudo é silêncio.
Com os braços apoiados ao parapeito da ponte , entrego-me à lassidão da tarde.Daquilo que penso,só mesmo eu,é quem sabe. Uma estranha sensação de paz e vazio,entrelaçados,faz-me perceber tão enigmático quanto aquêle senhor que deixei pra trás.
Em pensamentos vejo-me seu aliado.
Assim,ele e eu,somos dois enigmáticos.
Presos ao travo do fim do dia.

Joel Gomes  Teixeira

Texto reeditado
Preservados os comentários ao texto anterior:



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09/10/2011 12:18 - Malgaxe
Olha eu li este texto no Blog da Claudia, e suponho que o viaduto seja da Br 277, mas o que eu queria saber é se o texto é verdadeiro ou ficção, e onde é este lugarejo abandonado com uma quadra de esportes e um sobrado que morou um casal, etc. Curiosidade minha, será que eu sei onde fica isso? abraço

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21/09/2011 07:13 - Maria Olimpia Alves de Melo
Penso que todos nós, de uma forma ou outra, trazemos dentro de nós esse enigma que é o eu interior e a quem poucos têm acesso. Muitas vezes nem o próprio indivíduo consegue decifrar os seus mistérios.

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19/09/2011 22:06 - Layara
tua memória é fotográfica Joel! você consegue refazer teus precursos detalhe por detalhe e isso é encantador! meu abraço

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19/09/2011 19:08 - Giustina
Tuas crônicas despertam sempre saudades em mim, de um tempo que se foi prá nunca mais... O bucolismo desta é eternizado pela ponte que passa acima da estrada de ferro e que me trz boas e saudosas lembranças da infância. Grande beijo, meu querido.

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18/09/2011 21:23 - Lenapena
No fundo, no fundo.... somos todos enigmáticos. Cada qual a sua maneira. Mas, todos carregamos nossos silêncios e segredos, aprisionados dentro de nossa essência. Nossas recordações e saudades arquivadas dentro do coração. Raramente falamos de fato, sobre o que nos vai, lá.... no fundo de nossa alma. Bom sempre, vir aqui ler seus textos. Uma boa noite