CARTAS ANÔNIMAS PELAS MÃOS ALHEIAS
Lá pelo ano de 1982 do século passado, numa das cidades do interior do Rio Grande do Sul, o marido desconfiava que um colega de trabalho prazeirava-se no seu próprio lar, passando pelo espaço que se abria ao movimentar uma tábua solta na cerca que dava para um terreno baldio.
Ao invés de consertar o defeito da cerca, preferiu castigar o visitante indesejado, então resolveu denunciá-lo ao chefe, que não tinha nada a ver com o caso.
A denúncia deu-se através de cartas anônimas. Nelas ele relatava a ousadia do colega de trabalho, que usufruía de intimidades com as mulheres dos outros. Tratava o assunto de forma genérica, sem definir a quais as mulheres, mas sobre o abusado, ele dava o nome completo.
Embora ela negasse e confirmasse somente investidas em conversas um pouco mais picantes que simples elogios ao sexo oposto, o marido estava furioso.
Como vingança ele buscou pressionar o chefe para transferi-lo de cidade e assim afastá-lo dela.
Valdo que julgava-se traído, escreveu uma série de cartas, para o suposto concorrente, além das dirigidas ao chefe de ambos, cartas inicialmente num tom suplicante, que por não serem atendidas foram tornando-se ameaçadoras.
Os dias passavam e ele a cada noite de trabalho, corroía-se de ódio por não ter êxito em afastar o fanfarrão que aprazeirava-se com sua esposa.
A primeira carta chegou ao chefe, quase em tom de humildade, dando conta que um lares estavam sendo destruídos.
As cartas dirigidas ao chefe certamente amontoavam-se em algum canto, sem surtir efeito, pois ele limitava-se a indagar se alguém sabia quem o abusado andava visitando. O acusado foi ouvido várias vezes para saber se ele tinha algum caso extra conjugal.
Claro que ele negou, mas fez suposições sobre a pessoa de um colega e vizinho, pensando que poderia ser uma represália por não ter aceito para prestar-se de fiador na compra de um antigo fusca. O chefe não quiz contrariá-lo, pelas razões apresentadas e mandou o departamento de pessoal trazer todos os registros onde houvesse a letra de punho do funcionário que agora pairava a desconfiança. A letra de Valdo não tinha qualquer semelhança.
A medida que as ameaças tornavam-se mais graves, Ney, o fanfarrão, por ser mais cauteloso mudou-se de cidade, por livre e espontânea vontade, pois temia por seus filhos.
Segundo o comunicado feito à chefia e colegas, buscava melhores condições de estudo para os filhos.
O chefe também não tardou a ser promovido dentro da empresa e mudou-se à capital.
Enfim voltava a paz aos três lares, o do casal, que tinha a esposa galanteada e talvez vítima de coisas mais indecentes, paz ao do chefe, que não precisaria levar e buscar a pequena filha, na escola, para evitar um possível sequestro, conforme ameaças nas cartas e paz ao próprio galanteador, que também tinha ameaças sobre seus filhos.
Ney, tido como flertador por Valdo, retornava mensalmente à cidade para cumprir compromissos assumidos junto ao comércio local.
A viagem era realizada de trem e na segunda classe. Durante cinco ou seis horas percorria a distância, que hoje é realizada em pouco mais de duas horas, se de carro.
Na segunda classe, os bancos eram de madeira. A viagem parecia interminável e dolorida, então os passageiros andavam pelos vagões, aliviando o próprio assento.
Numa das últimas viagens, já na metade do caminho um dos antigos vizinhos que também estava no trem, cumprimentou-lhe e pediu permissão para sentar-se ao seu lado.
Bastaram algumas palavras e o antigo vizinho foi logo perguntando se não estava aliviado por não receber mais as cartas anônimas.
Diante da surpresa da pergunta, pois o assunto das cartas estava reservado a poucas pessoas, não esboçou uma palavra, o homem continuou a falar das cartas, com tanta propriedade, que Ney indagou-lhe se não fora ele o autor. Claro que não, repeliu o vizinho e soltando a língua:
- As cartas foram escritas na casa do Pai Cleomar, aquela em que sou filho de santo, que mora em frente a lenharia. Nas terças-feiras depois de terminadas as sessões, ficávamos, eu, o Pai Cleomar, o Valdo, a mulher dele e a esposa do Pai Cleomar. Jantávamos e bebíamos uma garrafa de vinho. Era sempre era assim.
Ele era muito fraco com a bebida. Ele quem? Perguntou Ney. O teu ex colega, o Valdo. Muito fraco, então começava a chorar, repetindo sem parar que amava a mulher e implorava que o Pai fizesse alguma coisa. Numa das choradeiras o próprio Pai Cleomar sugeriu as cartas, começando a ditá-las para sua mulher, pois ela tinha uma letra bonita. Depois de escritas eram levadas até a cidade vizinha e de lá enviadas ao chefe e para você!
A conversa foi interrompida pelo apito do trem. Pronto, estavam chegando na estação.
Da série: Coisas do anonimato. Segunda crônica.