Helena e os 100 milhões
Helena e os 100 milhões
Antes de sair de casa uma voz me fez duas perguntas distintas:
1. E se você gastasse todo o tempo em que esteve esperando por um determinado resultado - se sentindo frustrado - comemorando o progresso que está fazendo?
2. Que tal dar graças por onde está, comparado a onde estava?
Esse tipo de coisa acontece de vez em quando. É similar a uma ortografia não linear. Eu ia contar pra ela a história de dois irmãos nordestinos - nordestinos dos EUA - que saíram de New Hampshire nos anos 20 e atravessaram o país para tentar a sorte em Hollywood. Queriam ser atores. Quando chegaram lá o máximo que conseguiram foi emprego de motorista de caminhão em dos estúdios. Ralaram o tchans poupando cada centavo durante anos e em 15 de outubro de 1929 abriram um cinema. Precisa ver que gracinha a fachada. Durou 15 dias. Daí eles repararam que o único sujeito que fazia dinheiro nas redondezas era um tiozinho vendedor de cachorro quente. Um par de anos mais tarde eles inauguram uma lanchonete, depois outra, tentam comidas variadas, migram pro modelo drive in, recuam, mudam de cidade, tentam de novo, até que um dos irmãos teve um insight - montar um sanduíche em 30 segundos. Tudo o que era necessário se resumia numa coreografia onde um gajo frita os hambúrgueres, outro põe o molho, outro fecha o sanduíche, outro embala, outro entrega. Você pode chamar isso de linha de produção, mas onde pretendo chegar é que ele enxergou a mecânica, percebe? Ninguém havia feito isso antes. Ele vislumbrou a coreografia e desenhou a cozinha onde a ação teria efeito. Assim, em 1954 os irmãos ganhavam um dinheiro honesto no estabelecimento que levava o nome da família: McDonald’s.
Conheci a Helena na terça de carnaval, na casa do Danilo, um cara muito legal que toca clarinete. Helena basicamente é sua mentora em várias áreas da música, proseamos um pouco, há tempos anseio escrever uns ensaios sobre virtuosos e a arte do improviso, algo divagante, para leigos, papeamos um pouco, pequenas conversas despretensiosas sempre tiveram em mim um efeito tônico semelhante a braçada em água morna, lisa, com vista mirando fundo infinito.
Combinamos para dia tal.
Essa faculdade do ser humano de, de estalo, sofrer um misto de epifania com ímpeto abrasador surge nas criaturas e situações das mais imprevistas. Veja o caso do Benjamin Siegel, um cara que viveu e morreu pela espada, nos idos dos anos 40 ele encasquetou de fazer um hotel e cassino super hiper luxo no meio do deserto, praticamente um pardieiro povoado por duas dúzias de almas, algumas dezenas de galináceos e tantos muares. Era o nascimento da Las Vegas tal como hoje se apresenta. Apesar do jogo ser legalizado em Nevada, ninguém dava um tostão pela idéia e sabe qual o principal argumento dele? Vamos colocar ar condicionado em tudo! Pois…o Flamingo, que custou 6 milhões de dólares em 1947, três décadas depois já havia faturado perto de 100 bi.
Tudo em virtude do Benjamin ter visualizado. Não usufruiu da coisa, mas isso são outros quinhentos e não precisamos nos ater a ninharias, já que estamos falando de 100 milhões e da Helena.
Helena mora em bairro aprazível, demorei um pouco para descobrir onde estava. A sua idade eu não arrisco, eu já dobrei o Cabo da Boa Esperança, agora rumo à Esperança Boa, creio que Helena já chegou lá, ela fala com sotaque, tão logo localizei a residência apertei o pause, me dirigi para a padaria mais próxima, estava adiantado 15 minutos, precisava de cafeína.
Conheço o Danilo desde o ano 2000. Vive imerso em pentagramas, seu oxigênio vem daí. Encontrei com ele em fins de fevereiro, manuseamos longa conversa, foi quando me contou sobre essa musicista que entrara em sua vida e se tornara espécie de estrela guia. Enquanto ele falava, tive um vislumbre. E agora cá estou, prestes a conhecê-la, e do nada me vem a história da centopéia na festa de dança na floresta. Ela ganha o concurso, todos os bichos a aplaudem, o leão, a girafa, os pássaros, todos tecem a ela generosos elogios, inclusive a serpente, porém, com uma certa dose de malícia, pergunta: como você fez com o quarto pé, e com o décimo sétimo pé, e com o quadragésimo sexto pé e o septuagésimo nono? A centopéia parou para pensar e nunca mais dançou.
Apertei a campainha às 14 em ponto. A anfitriã me convida a desconsiderar a bagunça organizada da sala de estar. Livros e partituras pra tudo que é lado. Um piano de parede próximo à porta de entrada. Nos vimos uma vez na vida e somos íntimos de 1.000 anos passados, ela me conta a história de seu país de origem, seus antepassados, sua devoção à música.
Minha ida até ali estava baseada numa suposta troca de impressões sobre instrumentistas virtuosos e o instante do improviso. Citei alguns nomes, na verdade ícones dependendo do nicho em que você se encontra. Ela não conhecia nenhum deles. Sequer ouvira falar. Ops. No seu universo transitam Guillaume de Machaut , Annibale Pio Fabri, Wilhelm Friedemann Bach, Arnold Franz Walter Schonberg, e seguem aí uns 130 nomes. Com bastante humildade me confessou que durante seu período na Universidade da Pensilvânia, onde fez pós doutorado, mestrado, bacharelado, caramelado e o que mais exista além disso, sempre que se discutia improviso chegava-se a conclusão de ser matéria pertinente ao Divino e, portanto, inexplicável.
- Abre-se um canal, você compreende?
Eu fazia hã hã com as mãos.
Então ela se dirigiu ao piano e começou a tocar, parou por instantes, me abriu um sorriso e disse: olha, eu não sou pianista. Pensei, lógico que não, eu é que sou.
Tarde da noite pesquisando no Google descobri que ela foi solista (violino) sob a regência daqueles nomes que a gente ouve e faz até reverência.
Impressionante como pretensiosos como eu conseguem se enfiar em cada constrangimento que Deus te livre. Sei que ela ficou tocando aquela peça, momento ou outro eu balança a cabeça, nunca vi ninguém tocar tão bem assim tão perto de mim, num instante a sala se encheu de anjos, palavra, esse tipo de música faz isso mesmo, acessa alçadas elevadas e seus representantes surgem de imediato. Ai, ai, pretensiosos como eu, a despeito das dores inerentes, conseguem colecionar informações, como quem coleciona cinzeiros de hotéis, cuja serventia mostra-se inestimável nos instantes mais imprecisos. Helena tocava e os anjos se acotovelavam na sala. Impossível dizer quantos, contudo, está escrito no Livro das Revelações, 5:11, que o número de anjos é 10 mil vezes 10 mil. Ora, isso dá 100 milhões.
Convenhamos, 10 mil vezes 10 mil é mais poético.
(Imagem: A. C. Chaves)
Helena e os 100 milhões
Antes de sair de casa uma voz me fez duas perguntas distintas:
1. E se você gastasse todo o tempo em que esteve esperando por um determinado resultado - se sentindo frustrado - comemorando o progresso que está fazendo?
2. Que tal dar graças por onde está, comparado a onde estava?
Esse tipo de coisa acontece de vez em quando. É similar a uma ortografia não linear. Eu ia contar pra ela a história de dois irmãos nordestinos - nordestinos dos EUA - que saíram de New Hampshire nos anos 20 e atravessaram o país para tentar a sorte em Hollywood. Queriam ser atores. Quando chegaram lá o máximo que conseguiram foi emprego de motorista de caminhão em dos estúdios. Ralaram o tchans poupando cada centavo durante anos e em 15 de outubro de 1929 abriram um cinema. Precisa ver que gracinha a fachada. Durou 15 dias. Daí eles repararam que o único sujeito que fazia dinheiro nas redondezas era um tiozinho vendedor de cachorro quente. Um par de anos mais tarde eles inauguram uma lanchonete, depois outra, tentam comidas variadas, migram pro modelo drive in, recuam, mudam de cidade, tentam de novo, até que um dos irmãos teve um insight - montar um sanduíche em 30 segundos. Tudo o que era necessário se resumia numa coreografia onde um gajo frita os hambúrgueres, outro põe o molho, outro fecha o sanduíche, outro embala, outro entrega. Você pode chamar isso de linha de produção, mas onde pretendo chegar é que ele enxergou a mecânica, percebe? Ninguém havia feito isso antes. Ele vislumbrou a coreografia e desenhou a cozinha onde a ação teria efeito. Assim, em 1954 os irmãos ganhavam um dinheiro honesto no estabelecimento que levava o nome da família: McDonald’s.
Conheci a Helena na terça de carnaval, na casa do Danilo, um cara muito legal que toca clarinete. Helena basicamente é sua mentora em várias áreas da música, proseamos um pouco, há tempos anseio escrever uns ensaios sobre virtuosos e a arte do improviso, algo divagante, para leigos, papeamos um pouco, pequenas conversas despretensiosas sempre tiveram em mim um efeito tônico semelhante a braçada em água morna, lisa, com vista mirando fundo infinito.
Combinamos para dia tal.
Essa faculdade do ser humano de, de estalo, sofrer um misto de epifania com ímpeto abrasador surge nas criaturas e situações das mais imprevistas. Veja o caso do Benjamin Siegel, um cara que viveu e morreu pela espada, nos idos dos anos 40 ele encasquetou de fazer um hotel e cassino super hiper luxo no meio do deserto, praticamente um pardieiro povoado por duas dúzias de almas, algumas dezenas de galináceos e tantos muares. Era o nascimento da Las Vegas tal como hoje se apresenta. Apesar do jogo ser legalizado em Nevada, ninguém dava um tostão pela idéia e sabe qual o principal argumento dele? Vamos colocar ar condicionado em tudo! Pois…o Flamingo, que custou 6 milhões de dólares em 1947, três décadas depois já havia faturado perto de 100 bi.
Tudo em virtude do Benjamin ter visualizado. Não usufruiu da coisa, mas isso são outros quinhentos e não precisamos nos ater a ninharias, já que estamos falando de 100 milhões e da Helena.
Helena mora em bairro aprazível, demorei um pouco para descobrir onde estava. A sua idade eu não arrisco, eu já dobrei o Cabo da Boa Esperança, agora rumo à Esperança Boa, creio que Helena já chegou lá, ela fala com sotaque, tão logo localizei a residência apertei o pause, me dirigi para a padaria mais próxima, estava adiantado 15 minutos, precisava de cafeína.
Conheço o Danilo desde o ano 2000. Vive imerso em pentagramas, seu oxigênio vem daí. Encontrei com ele em fins de fevereiro, manuseamos longa conversa, foi quando me contou sobre essa musicista que entrara em sua vida e se tornara espécie de estrela guia. Enquanto ele falava, tive um vislumbre. E agora cá estou, prestes a conhecê-la, e do nada me vem a história da centopéia na festa de dança na floresta. Ela ganha o concurso, todos os bichos a aplaudem, o leão, a girafa, os pássaros, todos tecem a ela generosos elogios, inclusive a serpente, porém, com uma certa dose de malícia, pergunta: como você fez com o quarto pé, e com o décimo sétimo pé, e com o quadragésimo sexto pé e o septuagésimo nono? A centopéia parou para pensar e nunca mais dançou.
Apertei a campainha às 14 em ponto. A anfitriã me convida a desconsiderar a bagunça organizada da sala de estar. Livros e partituras pra tudo que é lado. Um piano de parede próximo à porta de entrada. Nos vimos uma vez na vida e somos íntimos de 1.000 anos passados, ela me conta a história de seu país de origem, seus antepassados, sua devoção à música.
Minha ida até ali estava baseada numa suposta troca de impressões sobre instrumentistas virtuosos e o instante do improviso. Citei alguns nomes, na verdade ícones dependendo do nicho em que você se encontra. Ela não conhecia nenhum deles. Sequer ouvira falar. Ops. No seu universo transitam Guillaume de Machaut , Annibale Pio Fabri, Wilhelm Friedemann Bach, Arnold Franz Walter Schonberg, e seguem aí uns 130 nomes. Com bastante humildade me confessou que durante seu período na Universidade da Pensilvânia, onde fez pós doutorado, mestrado, bacharelado, caramelado e o que mais exista além disso, sempre que se discutia improviso chegava-se a conclusão de ser matéria pertinente ao Divino e, portanto, inexplicável.
- Abre-se um canal, você compreende?
Eu fazia hã hã com as mãos.
Então ela se dirigiu ao piano e começou a tocar, parou por instantes, me abriu um sorriso e disse: olha, eu não sou pianista. Pensei, lógico que não, eu é que sou.
Tarde da noite pesquisando no Google descobri que ela foi solista (violino) sob a regência daqueles nomes que a gente ouve e faz até reverência.
Impressionante como pretensiosos como eu conseguem se enfiar em cada constrangimento que Deus te livre. Sei que ela ficou tocando aquela peça, momento ou outro eu balança a cabeça, nunca vi ninguém tocar tão bem assim tão perto de mim, num instante a sala se encheu de anjos, palavra, esse tipo de música faz isso mesmo, acessa alçadas elevadas e seus representantes surgem de imediato. Ai, ai, pretensiosos como eu, a despeito das dores inerentes, conseguem colecionar informações, como quem coleciona cinzeiros de hotéis, cuja serventia mostra-se inestimável nos instantes mais imprecisos. Helena tocava e os anjos se acotovelavam na sala. Impossível dizer quantos, contudo, está escrito no Livro das Revelações, 5:11, que o número de anjos é 10 mil vezes 10 mil. Ora, isso dá 100 milhões.
Convenhamos, 10 mil vezes 10 mil é mais poético.
(Imagem: A. C. Chaves)