O Cara
Esta é a história do “Cara”. Assim ele era conhecido nos meios que circulava. Ele até já tinha ouvido esta referência, mas pensou que era para alguma situação específica e ele achava bom, até porque o “achar” era sua especialidade: ele “se achava”. Mal sabia ele que assim era conhecido, mas de forma jocosa e pejorativa pela sua forma de interagir com os outros: Sua experiência de vida era privilegiada e teimava sempre em ser superior e mais rica que a dos seus pobres ouvintes e não tinha assunto que ele não tivesse sua qualificada e luxuosa contribuição para presentear os espectadores.
Apaixonado por números, seus apartes eram superlativos. O “mais”, “maior”, “super”, “hiper”, “mega”, “ultra” apareciam com freqüência em seus relatos. Se não tinha á última opção em tecnologia, conhecia pormenores das suas fragilidades.
Alguém falava de um sério acidente automobilístico de onde saiu ileso, ele tinha um com proporções maiores, de onde escapou por pouco de um encontro de frente com caminhão, seguido de 1, 2, 3 capotamentos, precipícios, árvores e no qual pelo vidro quebrado e ferros retorcidos que momentos antes eram o seu carro, ele saiu e estava ali presente para delírio de todos, mesmo que no íntimo o delírio fosse que o destino lhes fosse mais favorável e tivesse retorcido também aquela figura chata.
O assunto era um livro que alguém leu, pois ele tinha lido um livro mais grosso, mais complicado, mais engraçado, mais o que você quisesse.
Você estava com uma dor qualquer... esquece, ele já tinha uma mais aguda, potente, latente, profunda, excruciante a lhe afligir.
De culinária à tratamento de doenças, de treinamento físico à encontros metafísicos, de orientação política à sexual, de jogos de cartas à cartas de amor, de finanças pessoais a economia global, de ecologia a astronomia, nada escapava das suas dicas fundamentais para o sucesso. Sua sabedoria e sua bondade não cabiam em si e ele tinha que compartilhar para que outros pudessem ter pelo menos um mínimo do que ele possuía em abundância.
Ele era o rei da teoria e das frases de efeito. Seus ditados populares por vezes eram ditos em momentos não propícios: ele era mesmo “O Cara” em se tratando de escolher os piores momentos e trazia constrangimentos para as outras pessoas que preferiam calar a retrucar, pois do jeito que ele falava pareciam sentenças sob as quais não cabiam recursos.
Não precisava ter filhos para saber a maneira única e certeira de educá-los. Se ouvisse algum questionamento sobre se já tinha educado algum ele apresentava orgulhoso histórias que serviriam de verdadeiros certificados que comprovariam a melhora em 100% nos modos de seus sobrinhos depois de uma temporada em sua casa sob a batuta de seus métodos infalíveis e não adiantava argumentar que os princípios de nossa educação para filhos pouco mudou de um filho para o outro e eles eram totalmente diferentes - Se seguíssemos a sua receita teríamos todos os filhos perfeitos. O que eram perfeitos segundo o conceito do “Cara”? Melhor não perguntar - ele teria uma resposta.
“Meus pêsames” - ele não conhecia, profundo conhecedor da dor de um luto, deparando com alguém sofrendo já vinha com a receita para a superação.
No final do ano os amigos do serviço estavam organizando outra festa informal paralela àquela que era institucional da empresa. Nesta, seu nome foi ficando de fora da lista, com pedidos de discrição a respeito da festa para que ele não ficasse sabendo. Ele percebia alguma coisa acontecendo, mas não sabia dizer o que era: as pessoas conversavam mais baixo, quando ele chagava tinha impressão de que desconversavam.
Teve gente que chegou a ficar com dó, mas os organizadores argumentaram que esta festa era para simples mortais e caso a pessoa tivesse um espírito superior como o do “Cara” esta não era uma festa indicada.
Como seria variar um pouco os protagonistas?
A festa aconteceu e ele nem ficou sabendo. Comes e bebes e causos. A soma das criatividades inventava um relato imediatamente a algum caso contado, simulando o que teria sido a resposta do “Cara”: contribuições diversas, cada um acrescentando um ponto no que seria uma hipotética fala do “Cara”. A hipérbole estava liberada. O riso também.
Ele não foi à festa, mas não deixou de ser o protagonista. Ele realmente era “O Cara".