Batida alcoólica
De tempos em tempos me debruço sobre meu passado e revivo mentalmente algumas situações peculiares às quais já me sujeitei. Isso é bom, pois me permite fazer análises sobre meu comportamento em diversas situações, torna possível conhecer mais a mim mesmo e - de vez em quando - arranca umas boas risadas. Invariavelmente, porém, fico assombrado com a minha capacidade de fazer coisas absurdas, impensadas e inconsequentes.
Certa vez, em Brasília, eu e dois amigos - batizados aqui de Marcelo e Roberta - decidimos tomar uma cerveja em um boteco de muita fama e pouca qualidade na Asa Sul. Chegamos lá e bebemos alguns litrões enquanto beliscávamos toda a sorte de aperitivos do estabelecimento. À certa altura da noite, os três já entorpecidos pelos comes e bebes, Marcelo bate na cabeça como se subitamente lembrasse de algo importante e diz:
- A gente não vai beber uma dose sequer de Gabi?! - E bateu na mesa ao encerrar a frase.
“Gabi” é a forma carinhosa e prática encontrada por nós para aludir à cachaça Gabriela. Inspirada na obra homônima de Jorge Amado, a aguardente é feita com cravo e canela, além de ter a cor do pecado natural da protagonista da trama. O gosto é inebriante. Pelo álcool, é claro, mas ainda mais pela textura da bebida, pelo rastro de prazer deixado na boca de quem a bebe. Subiu rápido na nossa preferência alcoólica por ser deliciosa e a garrafa, à época, custar cerca de oito reais.
Pedimos a primeira dose imediatamente. A segunda nem precisou ser proposta, apenas levantei o braço e pedi mais uma rodada para os três. Chegamos ao quarto shot de Gabriela quando Roberta declinou do desafio. Sem problemas, Marcelo e eu dividiríamos a parte dela. No momento de pedir a sexta dose, o garçom - sutil como um hipopótamo manco - sugeriu:
-Olha, por que vocês não compram logo a garrafa? Melhor que ficar me chamando a cada três minutos pra trazer copinho de dose - Estávamos em uma mesa do lado de fora do bar, mas em frente à porta de entrada e, no máximo, a três metros do balcão.
Bêbado como estava, ameacei responder à altura ao garçom, mas Marcelo, como sempre, convenceu-me de que era uma má ideia. Compramos a bendita garrafa por quinze reais, quase o dobro do cobrado em distribuidoras. Fomos para o carro. No momento de abrir as portas e entrar no veículo, um artista de rua abordou a nós três e pediu um gole da cachaça. Tínhamos uma vodca no banco de trás e não pensamos duas vezes. Quando compreendeu o presente recebido, disse para esperarmos por ele na rua ao lado.
Resolvemos que era uma boa ideia e estacionamos o carro em uma rua deserta, mas sem qualquer perigo eminente. Cinco minutos depois de pararmos o artista nos encontra. Seu nome era Foguinho, por causa dos malabares flamejantes lançados ao ar para seu sustento. Disse morar numa casa improvisada dentro de um beco e lá entrou. Na volta - sem os apetrechos de arte -, agraciou a nós três com histórias maravilhosas dos lugares onde passara vendendo sua arte por moedas, conhecendo pessoas irreais para quem vive dentro de bolhas sociais como os habitantes da capital federal.
Ficamos por lá até a madrugada tomar conta da noite. Secamos nossa garrafa de cachaça enquanto nos deleitávamos com os causos do artista. Quando nos demos conta do fim da bebida, despedimo-nos do nosso novo amigo e fizemos uma pequena reunião entre nós três para decidir o próximo destino. Resolvemos ir para a Asa Norte, onde conhecíamos um bar com horário de funcionamento estendido, algo raro em Brasília. Entramos no carro e, enquanto rumávamos para lá, brincávamos e ríamos. Era uma noite muito agradável.
Mais ou menos na metade do caminho, quando a Asa Sul se transforma em Asa Norte, resolvi ser uma boa brincadeira dar selinhos nos meus amigos. Como estava no banco de trás, com Marcelo dirigindo e Roberta no carona, tinha total controle da situação. Dei três beijos em Roberta e mais dois em Marcelo. Todos rimos. Como gente alcoolizada raramente se dá por satisfeita, julguei necessária outra rodada de beijos. Puxei Roberta e estalei minha boca na dela.
Quando puxei Marcelo, o movimento fez com que ele, involuntariamente, puxasse o volante e embicasse o carro em direção à calçada. Não lembro o motivo, mas esse beijo pareceu o mais demorado, mesmo interrompido por um tranco forte no carro. Senti apenas uma dor lancinante nos dois ombros e minha cabeça sendo jogada para frente e para trás. O automóvel subiu o meio-fio e acertou em cheio o poste de um sinal da via. Descemos do carro desorientados ainda. Fui analisar os danos. Marcelo bateu a mão esquerda e o rosto no volante, e sua camisa já ganhara outra cor por causa da grande quantidade de sangue oriunda do rosto. Roberta jazia próxima ao carro, gemendo de dor com as mãos em volta do abdômen. Por uma ironia canalha do destino, fui o único a sair ileso do acidente.
Comecei a pedir desculpas desesperadamente. Ainda zonzo, talvez, Marcelo sequer ouvia o que eu falava. Havia muito sangue em seu rosto. Quando olhei em volta para procurar socorro, vi um vulto desabar ao meu lado. Marcelo desmaiara. Desesperei-me com a imagem. Meus pensamentos logo rodearam o fato de eu ter posto meus amigos em risco, mas nossa preocupação se tornou outra em questão de segundos. Ainda que de madrugada, estávamos parados e avariados em uma avenida muito movimentada na capital, com um carro enfiado num poste. A qualquer momento alguém poderia aparecer ou - pior - chamar a polícia.
Logo o pensamento ganhou contornos de realidade. Um carro com três rapazes parou, perguntou como estávamos e se precisávamos de ajuda. A surpresa foi grande com a nossa recusa, mas eles foram embora. Alguns minutos depois, enquanto Marcelo e Roberta agonizavam na calçada e na grama rala, uma ambulância surgiu no horizonte. Foi um desespero. Corri para o carro, a esta altura já desvencilhado do poste e com amassados muito fortes e visíveis no capô. Quando os paramédicos nos abordaram, mantive meu corpo na frente das avarias do carro e jurei veementemente que tudo estava bem. Eles olharam para meus amigos e refizeram a pergunta. Mais um vez, disse não ser necessária ajuda médica e eles foram embora.
Ainda muito abalados, eu e Marcelo conversamos um pouco. Vi que ele estava bem, recuperando lentamente a consciência, então propus tirarmos o carro dali para evitar novos sustos como esse. Foi a melhor ideia tida por nós na noite inteira. Apesar de precisarmos de socorro, o carro estava com muitos documentos atrasados, e certamente seria apreendido caso as autoridades fizessem uma breve inspeção. Isso sem falar do nosso estado etílico. A duras penas, eu e Marcelo empurramos o automóvel até uma concessionária, na primeira quadra da Asa Norte. Estacionamos na parte de trás do imóvel e voltamos para o local da batida.
Liguei para uma prima e imediatamente ela e seu namorado - hoje noivo - foram nos prestar socorro. Depois dos vários e merecidos esporros e sermões, ouvimos mais um barulho de ambulância e só então percebemos nossa localização. Estávamos em frente ao Hospital Regional da Asa Norte. Marcelo necessitava de atendimento médico, então fomos para lá mesmo. Na confusão toda, Roberta ligou para seus pais, que foram buscá-la, e sequer se despediu de nós, o que me deixou com o coração apertado pela minha total responsabilidade naquele acidente. No hospital, Marcelo foi medicado, mas não havia placas para bater o raio-x da mão machucada.
Como tudo já estava sob controle, agradeci à minha prima e seu namorado pela ajuda e pedi que fosse para casa. Ela foi, mas não sem antes me dar um último esporro. Marcelo ligou para o pai e ele também rapidamente apareceu por lá. Fomos a outro hospital e lá esperamos uma eternidade até conseguirmos atendimento. Saímos pela manhã, com cara de ressaca, ensanguentados e - pior de tudo - sem carro e sem bebidas. Passamos algumas semanas sem nos falar, mais por vergonha minha que por qualquer outra coisa, mas ainda somos grandes amigos. Irmãos, eu diria. E até hoje o poste no qual batemos conserva uma pequena dobra onde foi atingido pelo carro.