Susto em Nova York
Tomo um avião da American para Nova York, saindo de Porto Príncipe, Haiti. Deixo alguns conhecidos que, com o tempo, poderiam tornar-se amigos. Sina de vida cigana, quase nunca se dá continuidade aos relacionamentos, que se esfacelam no espaço e se confundem com o passar do tempo. Três meses por ali, muitos passeios, alguns perigos em razão da situação conturbada de um país eternamente em crise. No entanto, ninguém poderia prever que as coisas iriam piorar ainda mais com o terremoto de 2010. Por enquanto, estamos em 1997.
Agora, o que importa é curtir a viagem e não esconder a emoção de ir pela primeira vez à Capital do Mundo, no dizer de muitos. Hotel já reservado, certo alívio por deixar o Haiti pela constante instabilidade política, precariedade de serviços e violência urbana.
No avião, cintos afivelados, hora de relaxar, decolagem iniciada. Viaja na minha fileira um casal haitiano de meia idade, simpáticos e conversadores. Iniciamos uma conversa amena, sobre o tempo, Porto Príncipe e Nova York. O voo sai com atraso de quase duas horas. A viagem é tranquila, sem escalas, mas o atraso em Porto Príncipe faz com que o avião aterrisse no JFK quase às duas da manhã. Era mês de março. Aeroporto lotado, vento frio lá fora, chuviscava.
Terminada a passagem pela imigração num aeroporto abarrotado, só me sinto liberado às três da manhã. Agora é só pegar um "yellow cab", como nos filmes, e partir pro abraço. Quer dizer, pro quarto quentinho do hotel em Manhattan, descansar e sair para conhecer a "Big Apple".
Entretanto, depois de alguns minutos de procura, nada de encontrar sequer um famoso "yellow cab". O casal haitiano já havia se despedido, mas estava com o mesmo problema – não encontrava táxi. Refazemos o contato e vamos à luta. Muita gente esperando, volta e meia saía alguém em carro particular. Mas os táxis, tão vistos nos filmes, naquele momento, não apareciam.
O frio lá fora e o hotel esperando fazem com que eu me estresse e perceba taxistas circulando por ali, olhando para o alto, balançando chaves discretamente e dizendo entre dentes: táxi, táxi, táxi... Sotaque espanhol. Curioso!
Um dominicano se oferece para levar-nos, é simpático, mas os haitianos recusam. São vizinhos de ilha, deve ser por isso. Às vezes, vizinhança atrai, às vezes gera repulsa. Desisto do dominicano, mas logo aparece um jamaicano, cabelo black-power, magro, com quase dois metros de altura, que passa também oferecendo serviço. Táxi, táxi... De repente, cai a ficha, esses táxis são piratas. Mas aqui também?
Vou falar com o jamaicano, me aproximo, vejo que o casal haitiano também se aproxima dele. Fechamos negócio, já estava ficando tarde, e o sono começava a incomodar deveras. O taxista tem um ajudante, o ajudante vai acomodando nossas malas no bagageiro. Logo em seguida, vem uma senhora, também jamaicana, conhecida do nosso futuro piloto. Pronto, lotação completa. A conterrânea de Marley pergunta por sua mãe, a dele, claro. Bom, pelo menos, o cara tem mãe, já é uma referência.
Acontece que o bagageiro já está cheio com minha bagagem e a dos haitianos, mas nada parece impossível para o Bob Marley do volante e seu comparsa. Um sinal, e os dois se coordenam para enfiar a bagagem da conterrânea até não caber nem um beiço de pulga. Quando o ajudante vai fechar, um acidente de percurso: o bagageiro não fecha. Isso também não é problema para eles. Com certeza, já havia acontecido antes e a solução estava guardada no fundo do porta-malas: um pedaço de arame. O ajudante fecha a tampa até o limite, salta rapidamente sobre ela e se senta para dar peso. Ato contínuo, o nosso Bob Marley passa o arame em volta, dá um laço, muitos anos de praia... E pronto: a bagagem está acomodada dentro do porta-malas.
Nesse momento, notei que havia algo estranho. Eu não estava pegando carro de praça na Pitangui dos anos 60 e já tinha saído do Haiti de 1997. Pensei em recuar, desistir, era algo totalmente inesperado e suspeito numa cidade de primeiríssimo mundo, mas o vento frio e a chuvinha fina não davam trégua. Era mister, diria o Padre Vieira, que se tomasse uma decisão. E a decisão foi tomada – entramos todos no mesmo barco, quero dizer, carro. Não era nem yellow cab nem qualquer outra espécie de táxi de qualquer outra cor. Mas perdido por um, perdido por mil. Embarcamos.
Os passageiros se acomodam. O casal haitiano, o ajudante e eu no banco de trás, quatro pessoas espremidinhas. Na frente, o chofer Bob Marley, de basta cabeleira, e sua conterrânea. Essa acomodou o que sobrou de sua bagagem na frente da poltrona, debaixo de seus pés e os pés sobre os pacotes e mochilas, quase à altura do para-brisa, acima da linha da cabeça. Os dois conversam animadamente, enquanto o carro, finalmente, arranca e sai do aeroporto.
No entanto, a viagem não dura muito, cinco a dez minutos, depois de sair da área do aeroporto. No nosso caminho, duas enormes viaturas policiais interceptam o carro, uma pela frente e outra por trás, os holofotes das viaturas iluminando metade do mundo conhecido, as sirenes fazendo o maior estardalhaço. Estamos num filme?
O táxi para. A polícia pede documentos ao motorista. Entendemos que é normal, faz parte do controle, ficamos conversando, o casal haitiano e eu. De repente, olho pela janela e vejo o chofer de joelhos, mãos para trás, algemado. Uns minutos depois, uma das viaturas abre generosamente as portas traseiras e recebe o cabeludo em suas entranhas. A viatura sai em disparada, levando o cover de Marley literalmente engaiolado.
Ficamos nos olhando, perplexos, os haitianos e eu. Um dos policiais da viatura que ficou vem nos perguntar se sabíamos que aquele não era um táxi oficial e, portanto, não permitido; se sabíamos que o taxista não era taxista, nem tinha carteira de motorista; se sabíamos que o carro não tinha documentos e que o chofer estava embriagado. Eu só desconfiava que era táxi pirata, o resto foi acréscimo; os haitianos, não sei o que responderam nem o que acharam do evento, mas não acredito que se incomodassem em viajar num táxi pirata. Não deve ser raro no Haiti. Acho que tentaram explicar isso ao policial no seu inglês quebrado, cheio de sotaque, mas era, de qualquer maneira, conversa irrelevante àquela altura.
Terminada a preleção moral, o agente da lei informa:
- Vamos chamar um táxi para cada destino. Por favor, os endereços aonde vão.
Bronx, Brooklyn... e Manhattan, o meu, o fim da linha, cada um declina seu destino, e logo chegam um, dois, três táxis. Três amarelinhos, finalmente. Cada um sobe no seu, me despeço do casal haitiano, que parecia um pouco assustado, e sigo a viagem.
A jamaicana também subiu num táxi, mas tinha um ar preocupado, nem disse tchau. Na certa, se condoía do destino do conterrâneo. O ajudante, não sei onde ficou. Acho que a polícia levou também.
O táxi que me coube era de um dominicano. Conto-lhe a história. Ele diz que os policiais já lhe haviam dado informação. Aí, com um espanhol meio estranho para mim, diz que, como eu era o último a descer, provavelmente ia ser assaltado. Talvez me pudesse passar coisa pior. E foi desfiando histórias de casos como aquele, naquela época, um golpe recorrente na mais importante metrópole do mundo.
Quando cheguei ao hotel, pensei logo em ligar pra mamãe e pedir colinho. Mas era muito tarde da noite e muito cedo da manhã, vocês decidem, apaguei e dormi até o meio-dia, sem despertar.