* O PRÍNCIPE E O PLEBEU
 
Morava numa poética rua do Leme. Pelas inúmeras fotos penduradas na parede do apartamento, qualquer visitante poderia identificá-lo como um jovem escritor de sucesso. Apesar de nunca ter conquistado sequer um prêmio literário, ocupava o cobiçado status de campeão de vendas na editora que o publicava. Tinha fãs, milhares de adolescentes e adultos deslumbrados com o eco que lhes soprava a esperança de, num dia iluminado em neon, alcançarem os holofotes da fama. Uma coisa puxa a outra, ganhou coluna em jornal, se tornou roteirista de cinema, dava entrevista nos talk shows da moda. Além de tudo isso, cultivava a secreta ambição de ser convidado pela Oprah Winfrey e lamentava a aposentadoria do velho Jô Soares, que sempre representou a porta da esperança para meio mundo de anônimos.
 
Na correria que o tirava de casa para os encontros com celebridades, para as palestras nos colégios e faculdades mais caros do Rio, sempre topava com um indigente acampado na calçada. Não tinha erro, passava por aquele cidadão ao relento e ele o saudava em alto e bom som: “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”.
 
A cortesia da educação o consolava da imediata repugnância que sentia por ver aquele homem sujo, aninhado entre montes de papelão e jornais. Até que um dia lhe estalou uma ideia. Chamou um amigo e explicou seu plano, presentearia o mendigo com um dos seus livros de maior sucesso, daria à ocasião a emotividade necessária. Enquanto isso, seu companheiro e cúmplice na trama filmaria o grande gesto filantrópico que, posteriormente, seria colocado num canal do YouTube. Orgulhava-se por ter engendrado mais um golpe de marketing.
 
Aconteceu a alvorada. Saiu com o livro debaixo do braço e um marcador de página cor de prata ilustrado com seu rosto pendurado na capa. Estacou em frente ao miserável, que o cumprimentou imediatamente, como se houvesse sido adestrado.
 
- Bom dia – exalta o pobre homem.
 
- Bom dia, meu nobre – responde o jovem escritor com um sorriso largo que poderia fazer um transeunte desavisado confundi-lo com algum vigarista do calçadão – Tenho um presente para o senhor, um livro escrito por mim, para ajudá-lo a passar o tempo na leitura.

O lázaro urbano estendeu a mão trêmula, agarrou o calhamaço, o folheou com entusiasmo juvenil, cheirou suas páginas perfumadas de papel novo e retornou o olhar brilhante para aquele abastado benfeitor juvenil. Do outro lado da rua, o amigo filmava frenético com o celular. O que se seguiu depois foi rápido, o maltrapilho abriu novamente o livro, separou 4 páginas do prefácio escrito por um autor de novelas da Globo, arrancou as folhas com súbita precisão, arriou as calças e limpou-se nas cavidades íntimas do corpo. O universo se apagou.
Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 28/03/2017
Reeditado em 28/03/2017
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