A mulher e o canarinho

Decidiu ir embora de casa para longe do Cambaio. Tomou a decisão enquanto caminhava pela rua. Falava sozinha aos passantes palavras incompreensíveis, descontroladas. “Demolirei o argumento de Cambaio. Aquilo era estrupício”. Estava na frente do verbo falir na terceira pessoa do indicativo. Estava zangada e falida. O Cambaio era feio demais e sem critério. Sonhava com abono. “Compito com ele no braço, dizia, ameaçando-lhe: Solto-lhe o canário. Quer saber?”.

Revia a cara do Cambaio diante da gaiola vazia.

- Demolo o Cambaio e depois?

É claro que por traz de tudo o critério era continuar com ele. Ter Cambaio como amigo. Não sabia o que dizer nas provas, mas era amigo. Havia sido reprovado em todas as matérias e suas qualidades eram musicais, artísticas, obreiras.

- Ser um perfeito cavalo em geometria, brincava com os colegas. A mulher cansada das quadradas grosserias do péssimo geômetra que era o amante decidiu partir. Num dia de temporal surgiu pelo retângulo da porta do quarto dizendo: volto hoje mesmo para Curral. Fulminante. Dramática. Cambaio não era homem de chorar entre relâmpagos da tempestade.

- Vamos saber, cada um com sua vida. Estava conformada. Também se conformou. Ela era uma mulher carpideira que lembrava do passado resmungando. Tremenda. Quando se tratava de piolho, piolho era piolho, pau era pedra. Duríssima. O fato é que tomava decisões importantes. Era seu apoio matemático.

Dias depois o Cambaio se encontrava em apuros porque quando uma mulher abandona a casa esta transforma o homem em hóspede de albergue terrível. Nasce uma guarida horrível de roupas sujas. Sua vida se transforma em luta contra sujas sombras poderosas. Era-lhe difícil apagar os vestígios da provocante eternidade quebrada num único adeus.

O Max nunca havia assistido aquele colosso emocionado. Continuou falando sem parar sobre sua vida durante a noite:

- Estou lidando com o filme do abandono e está sendo difícil... Fez rir os mais chegados que esfregavam bebida alcoólica no peito enquanto ele desabafava. Bebeu como um cão. Levou dias se arrastando para esquecer a voz de muitos anos. Passou a ouvir reggae como homem de verdade. Espécie de curativo.

Sua primeira resolução de abandonado revelava uma face estranha de seu triste ser. Acabadiço resolveu soltar o canário logo que a mulher desapareceu. Só estava aguardando o tempo melhorar, chovia muito naqueles dias de outubro. Esperava um momento de aquarela, dias tão coloridos que inspiram quadros aos pintores e versos aos poetas; depois havia o gesto: soltaria o canário com convicção! Estava na lista de coisas boas que estava fazendo para limpar a consciência do abandono que a mulher havia lhe deixado. Era preciso soltar o canarinho para lhe dar a pura liberdade, e nunca mais os cuidados diários.

O dia livre chegou. Acordou com a banda marcial tocando na planura por motivos alheios aos seus. Tomou café frio, mordeu o pão esquecido na mesa, foi até a gaiola para agir como sempre: “Comida, canário, gaiola, galho de limoeiro”. Etapas. Mas o canário ficou desconfiado. Sentia no olhar de Cambaio outro Cambaio. Canário cantador desacostumado com a rua e sem intenção das superfícies livres... A gaiola se manteve com a portinha aberta e escancarada por longo tempo. Porém o canário não saiu durante horas. Não partia nem com tuba. De conformado o passarinho repentinamente tomou uma decisão que foi um sucesso! Levantou vôo. Foi um espetáculo! Um átomo amarelo voejou até o abacateiro, fazendo escala no limoeiro, retornando de volta para o ponto de partida. Inacreditavelmente!

Depois nunca quis sair da gaiola mesmo arreganhada.

De certo Cambaio passou um dia apenas com o sentimento de flauta invisível perdida no quintal da pobre alma. Somente quando recolheu do chão uma carta endereçada para “Cavalo em geometria” que notou o canário novamente. Teria que continuar carregando de dentro para fora e de fora para dentro o pássaro indesejado todos os dias. A mulher havia partido... O canário não.

Por que não abrir a carta? Havia saudade: Vamos mulher, segure as pernas no alto, pode ser? Para desentupir as botas enlameadas lhe faltavam apoio. Talvez ela voltasse como o canário.

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