O trem, o cais e as paixões
Nós nunca ficamos com nossas grandes paixões. Elas marcam um tempo, um espaço, como se, por serem ferozes e doces, não pudéssemos conviver com a ambiguidade. Abro uma página em branco para escrever e me pego a pensar em quantas páginas em branco negamos o direito à escrita. Nossa vida é uma página, um devir, de circunstâncias, pessoas, amores, amigos, inimigos, que revelam quem somos e definem quem queremos ser.
As paixões devem ser essas histórias não escritas, esses contos mal interpretados, essas conversas fiadas que não levam a lugar nenhuma. Há..., mas as paixões são como ventania, daquelas que desalinham os cabelos, os sentidos, o tempo e nos botam a sofrer. As paixões são como o vento em tardes quentes ensolaradas, aliviam o calor, refrescam a alma, por vezes rejuvenescem até.
Reflito se o trem poderia ter esperado. Que rumo daria a vida? Não sei. Ele partiu. O trem da vida não fica a nossa espera, aguardando decidirmos se embarcaremos ou não. Ele passa, talvez passe somente para os destemidos, para os loucos. Aqueles sujeitos de alma livre, que jogam a segurança em troca de morrer por algumas horas de amor.
Penso que assim são as paixões, um trem desgovernado, que passa poucas vezes, sempre quando estamos atrasados e não nos espera decidir. Ou embarcamos no escuro, rumo ao desconhecido ou ficamos parados na estação, a espera de outro trem, prometendo neste embarcar. Quantas vezes repetimos “da próxima vez eu vou fazer”. Mas nem sempre a vida nos dará uma segunda chance, então, talvez isso explique porque não ficamos com nossas grandes paixões.
Estamos muito distraídos tentando contentar o outro, em atender a expectativa do outro, em não fazer sofrer o outro, o outro, o outro...e deixamos de cuidar de nós. O primeiro trem passa, o próximo se atrasa, o outro não era para mim, o seguinte chegou tarde, e último, há, eu já estava velha demais para embarcar.
Sempre quis ser desses sujeitos destemidos, mas talvez a loucura não faça morada em mim. Sempre quis ser desses aventureiros, mochila nas costas, um amor em cada porto, mas escolhi a segurança do cais. No cais o vento bate, mas as ondas não conseguem me arrastar. No cais há apenas movimento sem sair do lugar. Do cais eu vejo todos os navios destemidos partirem, mas prefiro deixar o barquinho medroso que habita em mim se movimentar pela água, sem grandes riscos.
No cais estou presa com firmeza a uma âncora pesada, que pensando bem, pode ser a âncora dos meus medos, das minhas desilusões. Talvez isso explique porque nunca ou quase nunca ficamos com nossas grandes paixões. Elas aparecem na hora errada. Mas a culpa não é minha, por não ser uma dessas aventureiras destemidas, a culpa é da paixão, ela se atrasou.
Ela chegou e eu já havia partido com minha covardia para o cais. Lugar de onde tudo avisto, lugar de onde vejo a lua, contemplo as estrelas, avisto as despedidas tristes e os felizes reencontros. Lugar onde pesco histórias, escrevo e descrevo sentimentos, ao mesmo tempo em que alimento a ilusão de que a paixão não é para mim. Até que um dia eu me desprenda e apenas navegue nas doçuras e ilusões que só a paixão sabe dá.