Assim ou...nem tanto.84

Procópio

A solidão, disse quem sabia, é a distância que me separa de mim mesmo. Talvez isto possa justificar o grande desconforto de me sentir ilha no meio de, às vezes, muita gente. É como se, bruscamente, estivesse num lugar onde só falassem mandarim, língua que desconheço, ou como se eu fosse o diferente no meio de iguais. Sem nada em comum com quem nos rodeia, regredimos para o nosso interior e aí ficamos pequenos, escondidos, mudos e apagados, a tentar fugir das luzes ou dos pontos de rotura. Falamos connosco mas não nos entendemos. As palavras ditas para dentro não são boas de escutar e, assim, gradualmente, acabaremos como um frio cristal imóvel na vida.

Um dia comprei casa num bairro novo onde ninguém se conhecia e onde ninguém se queria conhecer. Vivia como quem resiste num deserto. Nem palavras nem ideias e quando começou a doer muito o silêncio forcei o Procópio, retirado adormecido ainda do muro do quintal, a morar comigo. Senti que o afastava do seu mundo numa altura em que a primavera anunciava possíveis núpcias para os que, da mesma laia, esperavam despertar a tempo de sentir, amável, o sol brilhar. Atrás do vidro da janela o coloquei a receber luz e calor. Logo ali acabou o meu discurso interior. Passei a falar-lhe de tudo e mais alguma coisa pouco me interessando se me escutava no afastamento próprio da sua letargia. Poucos dias depois acordou e teve alface ao pequeno-almoço. Dai para a frente comíamos juntos e a conversa foi sempre intensa, variada, dialogante. Eu jogava o tema, fazia a análise e perguntava. Depois, como os caracóis são muito reservados, expunha-me os assuntos por ele. Durou até perceber que ou lhe dava licença para ir embora ou teria de responder à consciência pelo seu celibato sem sentido. E recoloquei-o no muro musguento do quintal.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 22/03/2017
Código do texto: T5949114
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