Antropologia dos carecas

Nesta semana, numa pequena revolução copernico-estética, raspei o cabelo na máquina zero. E se a ideia de revolução parece exagero nesse caso, convido @s leitor@s mais dispost@s a irem até o barbeiro mais próximo (barbeiro, que para isso não é preciso salão) e então sentirem o suave raspar metálico direto no couro cabeludo. Há um quê de luxúria nesse raspar, um estímulo quase sexual, mas essas linhas não se tratam de 50 Tons de Cinza, e sim de antropologia.

Afinal, dizem as más línguas,a antropologia serve para transformar o banal em importante e nisso fantasiar-se de ciência. E isso tudo através de um texto cheio de “eus” e subjetividades.

Prossigamos então.

A primeira coisa a se notar é que cabelo é um fetiche. E isso no simples sentido de que damos a ele mais importância do que um elemento queratinoso, dividido em cutícula, córtex e medula, e que cresce insistentemente todos os dias, de fato merece ter.

Isso é notado logo no barbeiro vacilante.

“Na zero?”, pergunta. “Isso, na zero”, repito. “Vai ficar bem curto, sabe...”. “Mas é essa a intenção”. Aí ele fica ali, com a máquina em suspenso na mão, por uns bons 5 segundos e olhando para a minha cabeça. E acho que nesse momento ele visualiza menos com o que está fora dela e cogita mais o que vai dentro dela. E quando o barbeiro se torna um homem de ação, é por partes: passa a máquina só na base. “Vai ficar tudo assim, ó… tem certeza?”. “Ahã, pode seguir”, digo com toda a confiança possível dos antropólogos que noutros tempos iam morar no meio de tribos selvagens. Ele suspira como deve suspirar um carrasco. “Se você tá dizendo...”.

A segunda coisa a se notar, é que recusar-se ao ornamento capilar é algo de ofensivo àqueles que ainda apostam nele. Mais ou menos como acontece com aqueles que, na sociedade capitalista, se recusam girar a rodinha do consumo - “seu hipponga comunista, me dá então teu salário e vai aplaudir o sol, vai”.

Uma vez careca, descobre-se que os atenuantes de nossa existência cósmica e sem sentido são feitos não apenas por coleções inúteis, Facebook, Tinder e bolacha Passatempo mergulhada no leite, mas também por cabelo (e não necessariamente nessa ordem de importância). Ser voluntariamente descabelado é tornar aquele atenuante existencial um pouco menos crível (conclusão pautada na licença filosófica, perdoe).

Não foram poucos os olhares recriminatórios que recebi. E não faltam velhinhas que puxam as bolsas para mais perto de si quando veem aquela descoberta figura aproximando-se. E subitamente deixei de ganhar os gratuitos bons-dias e boas-tardes típicos da simpatia das cidades do interior.

Não ter cabelo é mal sinal, dizem aqueles olhares todos.

Daí, inclusive, seu uso em instituições nobilíssimas da nossa civilização, como manicômios, presídios, religião e trotes universitários.

Aliás, para quem acha que antropologia não casa com métodos objetivos, fica aqui uma provocação. Pois seria plenamente possível quantificar antropologicamente as causas que as pessoas atribuem a uma cabeça raspada – “porque, ó céus, há de ter um motivo lógico!”. Monge, louco e presidiário são frequentes; piolhos e um barbeiro não-credenciado, também. Serviço militar e skin head mantêm vivo o espírito bélico nas hipóteses. E as estatísticas reforçariam o caráter ofensivo da cabeça a la Pinduca, uma vez que ninguém cogita a mera vontade pessoal. E quando se sabe da vontade pessoal por trás da máquina zero, uma simples preferência, o choque é indisfarçável – e volto a notar que, nesse momento, as pessoas visualizam menos o que está fora da cabeça e cogitam mais o que vai dentro dela.

Mas o elemento mais antropológico de se raspar a cabeça é que passa-se a fazer parte da comunidade secreta dos carecas, sendo esta a terceira e última coisa a ser observada.

E, na verdade, é uma comunidade bem receptiva e pouco discriminatória.

Pois por mais que seja constituída em grande parte por pessoas que tiveram a careca como destino e não como escolha, isso não gera bullying ou desmerecimentos contra aqueles que tem uma careca fake.

Ao contrário, há uma troca de compreensão genuína entre duas pessoas que sentem o vento frio afagando o cocuruto – cocuruto, “o ponto mais alto da cabeça”, diz o dicionário para você que não teve o prazer de crescer ouvindo ameaças que contrapunham murros e cocurutos.

Dia desses, de longe, na rua, vi aquela careca experienciada. Já amarronzada pelo sol e pela vida, destoava enormemente da minha, ainda virginalmente branca. E só quando olhei para os olhos que vinham abaixo dela é que notei que aqueles olhos também fitavam uma careca; no caso, a minha.

E aí rolou uma sublime intersecção holístico-existencial entre dois homens (e sem o comprometimento de nossas masculinidades, sempre tão frágeis diante de intersecções sublimes entre machos).

Com um olhar rápido, franco e profundo, dissemos “Hey, cara, eu te entendo e te respeito”. E sorriríamos um para o outro, caso isso em nossa sociedade não pudesse ser compreendido como um convite a atividades escusas entre estranhos.

E mais de uma vez, num intervalo de poucos dias, outros carecas passaram por mim e muito sutilmente fizeram aquele conspirante cumprimento de cabeça, quando inclina-se testa e queixo para baixo, mas mantendo o olhar fixo. Tudo tão levemente feito que mais parece um segredo confidenciado, um sinal para dar início a atividades planejadas em madrugadas diante de uma mesa com cafés e cigarros. A comunidade dos carecas, ei-la aí, conspirando silenciosamente enquanto você abusa de condicionadores, ceras e pentes.

Entretanto, é preciso considerar que talvez toda a comunidade se sustente no singelo compartilhamento da praticidade máxima que é acordar e não precisar pentear-se diante do espelho.

Mas aos dispostos de plantão que agora se imaginam despossuídos de suas jubas mais ou menos espetaculares, fica a dica: nem tudo são flores. E este texto não seria antropológico caso se furtasse a relatar o que há de mais perverso na careca: o preconceito, já pincelado acima.

Agora, no entanto, me reservo a tratar do pior dos preconceitos. E o que pode ser pior do que o preconceito canino, logo quando você espera encontrar o invariável melhor-amigo-do-homem ao chegar em casa?

Pois o cachorro da pensão, ao invés de vir até mim no faceiro abanamento de rabo vira-lata, me veio aos latidos desconfiados. "Loki, sou eu. Vem cá, vem”, e ele se afastava, rabo e pelos eriçados. Foram dois dias para reatarmos a amizade, e a custo das sobras do meu jantar.

E aqui seria a brecha para uma antropologia animal: que eles também valorizam os ornamentos capilares, e talvez também tenham parte de sua existência sem sentido suportada fragilmente em cabelos – e aí explica-se a razão daquelas raças de cachorros sem pelos estarem sempre com esbugalhados, umedecidos e deprimentes olhos, raças tristemente desprotegidas diante do caos da existência.

Os latidos do Loki, portanto, representavam uma ojeriza profunda de raízes anteriores a qualquer cultura ou civilização. Ojeriza subornável com pedacinhos carne, é verdade, mas nem por isso desconfigurando a ojeriza que foi. Ainda a título de desconto ao suborno, é preciso considerar que os cachorros não seriam os melhores amigos do homem caso não fossem subornáveis, né.

Mas aqui interrompo a antropologia. Que informo que chove lá fora, e mais luxuriante do que o raspar metálico direto no couro cabeludo só mesmo os pingos das chuvas de final de verão direto numa careca virginal. E eis aí uma conveniência das carecas: uma boa desculpa para ter esquecido o guarda-chuva em casa.