O ESCOLHIDO
 
                         O mundo vive a descrença e o pessimismo. Fazem falta pessoas mais confiantes e otimistas. Conheci um desses otimistas imunes aos maus presságios. Respondia a um trivial "como vai" com um retumbante "cada vez melhor". Sempre convicto de que o amanhã seria melhor do que hoje. Não que se pudesse compará-lo a um Doutor Pangloss, como nos descreve Voltaire em seu impagável "Cândido ou o Otimismo". Mas, para abalá-lo, a notícia tinha que ser ruim pra valer. Não costumava carregar guarda-chuvas ou casacos. Para  ele simplesmente não ia chover ou fazer frio. Quando uma namorada o despachava, tinha certeza que outra melhor estava a caminho. Se alguma coisa tinha que dar errado, certamente não seria com ele. O melhor é que tudo acabava dando certo, reforçando sua visão otimista da vida. Até que certo dia um acontecimento quase pôs abaixo sua inabalável confiança na boa sorte.
 
                     Caminhava pela Rua Direita em São Paulo em meio àquela correnteza humana, quando olhou para frente e viu, sobressaindo no mar de cabeças, uma careca enorme e reluzente. Abaixo dela, a cara fechada de um sujeito alto e forte. Seu olhar esbugalhado varria o espaço sobre as cabeças da multidão, como se procurasse alguém. Notou que em volta do brutamontes se abria um espaço circular que o mantinha afastado das pessoas. E essas claramente o evitavam. Logo percebeu que da mão direita dele pendia uma espécie de bastão longo. De tempos em tempos ele erguia o braço sobre a cabeça e o girava no ar, descrevendo um círculo, e prosseguia sua caminhada com determinação. Diante daquela cena, pressentiu algo ruim (o que raramente acontecia com ele) e tratou de fugir da rota de colisão com aquela figura ameaçadora, atento aos seus passos e de olho no bastão. Com surpresa e temor notou que, por mais que tentasse desviar-se, o sujeito continuava vindo em sua direção. Quando se deu conta, o homem estava diante dele, olhando-o fixamente e girando o bastão sobre a cabeça. Num segundo, tum! Desferiu-lhe um golpe na cabeça e seguiu em frente, tranquilo, como se tivesse abatido um inseto. Meio atordoado, desequilibrou-se um pouco e quase foi ao chão. Só então percebeu que o bastão na verdade era um tubo de papelão grosso, desses usados para enrolar peças de tecidos ou rolos de plástico.

                Alguns transeuntes, entre aliviados por terem escapado da cacetada e um tantinho solidários, se aproximaram para lhe dar apoio. Ainda zonzo e surpreso, ficou conjeturando como entre milhares de caminhantes na rua tinha sido ele o escolhido para levar a bastonada na cabeça? Como isso era possível, logo com ele? Pela primeira vez, titubeou e duvidou de sua boa sorte. A sensação durou poucos segundos. Analisando o acontecido, ficou a imaginar como o resultado seria muito diferente se aquele bastão fosse de madeira e não de papelão. Estaria estirado ao chão com a cabeça rachada. E convenceu-se de que era realmente um cara de sorte. Inflou o peito e seguiu em frente.
Domingos Sávio ferreira
Enviado por Domingos Sávio ferreira em 17/03/2017
Código do texto: T5944311
Classificação de conteúdo: seguro