A SENHORA DO METRÔ

Quando me desloco pela cidade, prefiro utilizar o metrô, por considerá-lo mais rápido e um pouco mais seguro do que os outros meios de transporte público.

Tenho alguns rituais, eufemismo para manias, quando me utilizo desse transporte. Uma delas, na plataforma, é alcançar a posição em que calculo seja o meio do trem. Encontrado esse meio, avalio qual marcação do chão indica onde é a entrada da parte lateral do carro. Prefiro as composições nas quais os vagões são separados àquelas onde os vagões são interligados e o trem inteiro pode ser cruzado de uma ponta a outra sem precisar sair do carro.

Considero as partes laterais dos carros mais agradáveis para se viajar. Já reparei que a maioria dos passageiros prefere se posicionar próximo às portas de saída. Calculo que caibam pelo menos uns dez passageiros por metro quadrado naquela área do carro na hora de maior movimento. Enquanto isso, nas partes laterais, dependendo do horário, dá até para esticar um pouco as pernas.

A escolha do assento também faz parte do ritual. Quando dá para sentar, prefiro o banco mais próximo à saída na estação de meu destino.

Depois é relaxar e torcer para que não haja paradas prolongadas entre uma estação e outra a espera da “normalização do tráfego” conforme uma voz quase sempre inaudível, informa.

Há alguns dias, precisei ir ao Centro. Era pouco mais das dez da manhã e nesse horário o metrô já não costuma estar muito cheio. Fiz os devidos cálculos quanto à composição e, com sorte, encontrei o assento certo próximo à saída.

Após a próxima parada, Central, faltariam apenas duas estações para o meu destino, estação Uruguaiana. Até então, tudo bem! Ninguém sentado ao meu lado com as pernas incomodamente abertas, pessoas dormitando com a cabeça em meu ombro, gente comendo ou costas de mochilas batendo em mim a cada parada ou partida do trem.

Ao meu lado viajava uma jovem educada e imersa em seu pequeno tablete; no assento frontal uma raridade: alguém lendo um livro com capa e páginas de papel e, o mais interessante, esse alguém era uma pessoa jovem. Ao seu lado, um rapaz de uns vinte e poucos anos com fones no ouvido, que com um dos braços fazia movimentos como se tocasse uma bateria, ora uma guitarra. Havia pouca gente em pé e espaço suficiente para todos.

Na Central sempre entra muita gente. Para variar, a maioria das pessoas concentrou-se no espaço em frente à saída. Como não tenho por hábito de olhar para as pessoas dentro do metrô, abaixei os meus olhos e fiquei um tanto distraído, mesmo meditativo. O sinal sonoro anunciou o fechamento das portas e tão logo o trem entrou em movimento escutei a mulher que estava em pé à minha frente falar com a jovem ao meu lado sobre a possibilidade dela ceder o lugar para uma senhora que estaria em pé. Saí de minha meditação metroviária para acercar-me melhor da situação. Olhei para onde a mulher apontava e vi, tentando se equilibrar em pé, uma senhora bem pequenininha, magrinha e com uma bolsa enorme, sem conseguir encontrar uma brecha entre tantos corpos bem mais novos, para alcançara barra de metal fixa do chão ao teto.

Constrangido com a minha desatenção, levantei-me rápido do assento. A jovem sentada perto de mim fez o mesmo, assim como um outro sentado na mesma fila. Em segundos, três assentos ficaram à disposição daquela senhorinha. Ela ocupou o assento em que eu estava e a sua bolsa enorme, outro.

Agradeceu-me pela gentileza por ceder-lhe o lugar. Numa forma de compensar-me disse numa vozinha bem fraquinha que com esforço consegui entender entre os ruídos do trem em movimento, que logo poderia voltar a ocupá-lo, pois sairia na próxima estação.

No curto intervalo entre as duas estações, eu e as pessoas que estavam ao redor da velhinha ficamos sabendo de que ela tinha 86 anos e morava em Nilópolis. Havia vindo de trem daquele município e viajava sozinha. ‘Sozinha, não’, ela disse, ‘ acompanhada por Deus’.

Fiquei surpreso com o fato daquela senhora de 86 anos viajar sozinha ainda que acompanhada por Deus, de um município a outro, utilizar trem e metrô, para ir ao Centro da cidade sabe-se lá fazer o quê com aquela bolsa que lhe era descomunal e, num dia extremamente quente que fazia no Rio de Janeiro característico dos dias de Março.

O trem parou. Muita gente saltou na Presidente Vargas. Ela se despediu da gente e rapidamente, lá estava a velhinha e sua bolsa gigantesca a subir pela escada rolante com desenvoltura e leveza.

Em pé fiz o resto da viagem. O assento foi ocupado por uma moça.

Saí do metrô com a imagem daquela senhora e pensando sobre o que pode levar uma pessoa a chegar a tão avançada idade de forma independente, lúcida, ágil e ainda forte suficiente para andar no meio de uma multidão de homens e mulheres jovens apressados, sem atrapalhá-los no caminho, carregando uma grande bolsa?

Em seu semblante enrugado estava a resposta. Ao invés de uma figura amarga, triste, aparentando dor, cansaço, desânimo como costumo observar em muitos idosos, sendo sempre culpada a idade por tais humores e dores, vi uma pessoa, feliz, animada, querendo viver sem se importar por quanto tempo mais. Ela certamente tinha suas dores, seus cansaços, suas tristezas, suas lembranças do tempo em que era jovem, mas não se deixava abater, desanimar. Parecia encarar a vida como ela é: a maior e mais importante aventura da qual não lembramos de seu início e não conhecemos o seu fim, uma vida que para ser bem vivida não deve ser limitada por passados ou futuros, pois que no mais das vezes só nos trazem mágoas ou medos. O que nos serve o passado senão algumas experiências para não cometermos os mesmos erros e o que nos serve o futuro se ainda não o conhecemos?

Aquela senhora não carecia da ajuda de ninguém para carregar a sua bolsa. Não se apoiava em outro para manter-se de pé e havia saído em direção ao seu destino sem obstruir o caminho das outras pessoas.

Despediu-se com um sorriso de gratidão e me deixou uma lição: Ninguém é responsável por carregar os meus fardos, estar atento, disposto e preparado para as alternâncias da vida e não atrapalhar a vida de ninguém com meus problemas e medos.

Caso mereça chegar àquela idade, que Deus me permita ter 10% da saúde espiritual daquela senhora, e seguindo seu exemplo, eu possa ajudar alguém a aliviar o medo da velhice quando já não se é mais tão jovem assim como eu.