INDISCIPLINADAS NA TARDE




Diário de minhas andanças
( 17 de junho/2010)




Range a porta do estábulo alvoroçando pombos sobre o telhado.
Imerge de seu interior,uma figura quase cinematográfica.
Enfiado num pesado casacão,luvas e cachecol,o senhor claro,de altura mediana,lembra um repolho.
Parece irritado.
Uma das folhas da porta tenta um retorno e é devolvida ao seu destino num coiçe brusco desferido pelas botas de borracha que lhe calçam os pés .
Sereno,o bando de pombos se vai, desenhando arabescos em giz sob um céu hortenciado .
A vastidão azulada é tamanha,e tão bela, que provoca um átimo de brandura naquêle personagem grotesco.
Extasiado, ele percorre com os olhos as curvas sinuosas desenhadas pelos voejantes.
Na tarde de frio intenso,metido no sobretudo cinza,o irritado ajeita o cachecol,bafora entre as mãos esfregando-as uma na outra numa tentativa de aquecimento.
Mergulha no interior do estábulo reaparecendo em seguida carregado de tufos de feno sêco presos a um rastel, que vai espalhando ao longo dos cochos.
Espreita o céu por alguns instantes,procurando ao Sul alguns conhecidos traços do tempo que prenunciam geada forte.
Depois,meio sorumbático vai achegando-se à porteira.
A várzea ,esmorecida, treme de frio e do riacho ergue-se tênue cortina de vapor tecendo uma renda fina pela vegetação.
Solitário,um quero quero guincha a angústia de quem perdera-se do bando.
As pesadas botas do leiteiro ,galgam os primeiros desvãos da porteira . Do ponto mais elevado ,em pose de super herói,êle tenta arrebanhar o gado.
A voz é grave ,determinante...Rompe o travo da tarde!
Um breve assobio,como se fora um código,e na sequência o chamado quase suplicante:
-Tô....Tô...Tô...
Ecos lhe respondem no capão de mato.
(Tou...Tou...Tou...)
Alheias ,as vacas pastam na várzea gelada.
Mordem na grama o  que  presumo, suas "solidões de vacas".
-Tô...Tô...Tô...
(Tou...Tou...Tou...)
Indisciplinadas,elas continuam pastando.


Pela rodovia,dezenas de veículos vão cerzindo o asfalto sem se dar conta da cena.
Na minha caminhada, a imagem das indisciplinadas da tarde, o
"Tôu...Tôu...Tôu...",soado como se fora um deboche, nos ecos devolvidos pelo capão de mato instigam-me a confabular com os botões:
Não conseguimos, meus botões e eu, conter o riso ao imaginar que:
Se vacas falassem (ou cantassem) certamente estariam respondendo ao "durão da tarde"com antigo sucesso da " Luka":
-Tô nem aí!...Tô nem aí....

Joel Gomes Teixeira
Clic  para  ouvir:
https://www.youtube.com/watch?v=bYI2ytQvnjU

Texto  reeditado.
Preservados os  comentários  ao  texto anterior:


28/03/2012 01:21 - Chico Chicão
Meu caro Joel das belezas polacas de Irati do meu Paraná querido. Só você mesmo para captar estas cenas do cotidiano com tamanha nitidez e calor humano,no frio sulino.Me arrepiou os ossos de lembrar do frio,certa feita,na serra,levando gado pro mangueiro.Coisas da juventude.Este texto me lembrou G.Rosa-*Conversa de Bois*,pela beleza do humano. Obrigado. Fique na paz!


59032-mini.jpg
27/03/2012 17:05 - Anita D Cambuim
Você fechou a crônica de maneira absolutamente inesperada. Está ótima!


95566-mini.jpg
24/03/2012 09:34 - luciana vettorazzo cappelli
Gente, dizer o que, depois desta cronica, fazer o que? Isso que é um poema, isso que é um canto, um chamado envolvente e cadenciado, todo cadenciado e ritmado, de quem nos chama a nós, as vacas indisciplinadas nas nossas solidões de vacas.Iratiense...você é apenas...o que o melhor da humanidade sonhou, planejou...nasceu e deu certo.


9881-mini.jpg
23/03/2012 20:59 - Maria Dilma Ponte de Brito
Morrendo de rir de seu texto. Romantico, detalhado e no final divertido. Adorei.


54344-mini.jpg
22/03/2012 23:01 - CONCEIÇÃO GOMES
Irretocável pela expresividade e pelo realismo. Dá prá sentir a paisagem, o chamado, e a indiferença aparente das vacas, porque logo elas irão para o seu cantinho no estábulo atendendo ao tô, tô, tô...


24584-mini.jpg
22/03/2012 22:35 - EDNA LOPES
Meu caro Joel,tirando a paisagem gelada e o feno vi meu velho pai chamando as famintas da tarde para o "lanche" de palma forrajeira,milho ou farelo com melado,em temporadas de estiagiam.Que lindo texto!Abraço!


4537-mini.jpg
22/03/2012 22:30 - Lilian Reinhardt
Poeta voce deve ser também um grande romancista nato. Suas caminhadas perceptivas com a palavra e as coisas delineiam e sopram-nos a vida e seus movimentos. Que texto maravilhoso. Vir a sua página é colher a mais pura literatura que se conserva ainda no talento da alma que expressa sua cristalina verdade. VÊ-se as pedras nas águas puras de sua literatura. Precisamos urgente um livro seu! É memória e vida que nos enriquece de forma positiva, reinventando a magia da vida! Obrigada por partilhar! abço grande!