A difícil arte de ser feliz
A difícil arte de ser feliz
Quando caminho pelas ruas, ou simplesmente quando me junto às amigas para um fim de tarde num barzinho de minha cidade, fico observando as pessoas à minha volta. E são raras as vezes que vejo a maioria sorrindo, num clima de descontração total, numa boa, simplesmente curtindo a vida. Geralmente é uma agitação total, muito movimento e pouca paz. Aliás, o semblante de paz é o que menos se vê hoje em dia no rosto das pessoas. Cada um carrega o peso da carga que o dia a dia nos joga na cara, nessa luta competitiva que nos desafiam a viver.
Fico me lembrando dos meus pais, na rotina dos dias de antigamente. Meu pai era o provedor do lar enquanto a minha mãe bravamente ficava em casa cuidando dos filhos. Começava o dia cercada de filhos, servindo o café que era isso mesmo: café! Com pão e manteiga todos os dias, tirando os domingos quando havia um bolo feito no sábado, que perfumava a casa e nos fazia ir dormir sonhando com o pedaço a que iríamos finalmente ter direito. Isso mesmo, o pedaço. Partes iguais, para o batalhão de famintos daquela delícia, que sonhávamos um dia, quem sabe, poder comer por inteiro, até fartar. Mas sempre ficava aquele gostinho de quero mais porque a prole era grande e a educação severa, fazia parte dos bons modos e obedecer era de lei. Um pedaço igual para todos e pronto. No almoço, a refeição simples, nas panelinhas pretas do fogão a lenha. Ainda me lembro do cheiro da cebola dourando na banha de porco, aquela mesma que guardava as carnes na lata, de onde saía um naco todos os dias para abastecer nossa gula, que comíamos sem medo e sem a culpa desse tal colesterol que hoje constrange nossos pratos. À noite, minha mãe, sempre uma artista do fogão, juntava as sobras do almoço com alguma coisinha que sempre cultivava na primorosa horta do quintal e disso brotava uma sopa fumegante, chamariz da fome da molecada que vinha em fila depois do banho se banquetear. Ah!... Como a vida era simples na sua rotina, no trivial delicioso das pequenas coisas da nossa doída infância, no seu difícil crescer. E à noite, minha mãe cansada, liberava a molecada para brincar na rua, enquanto vivia em sonho, as aventuras das mocinhas das novelas. Como eu era a mais velha, sonhava junto, e me deliciava com seus devaneios e sorrisos ao imaginar as cenas, numa entrega serena de sonho e de paz. A vida era simples assim. Bastava um dia após o outro, desde que estivessem todos com saúde e barriguinha cheia para que fosse dormir feliz.
Hoje, as coisas mudaram. Mal um filho nasce, e as dúvidas e incertezas já começam a pintar de branco os cabelos dos pais. O medo da inflação, do desemprego, de não ter dinheiro para a escola, meu Deus, e a faculdade? Será que quando crescer vai ter ENEM, faculdade pública, FIES, cotas, lei de incentivo para a Educação? Escola pública tem greve todo dia, particular cada vez mais cara, professor estressado, dinheiro minguado, tem que arranjar dois empregos porque um só não dá para criar família. E família de um filho só, porque dois dobram os gastos, babá hoje está muito caro, tem carteira assinada, INSS, fundo de garantia, direito a férias e não dá para pagar duas, o aluguel pela morte, ou a prestação da casa, aleluia! E o carro? Tem que trocar porque está acabando a garantia, carro velho só dá oficina, a prestação é de lei, mas o carro é instrumento de trabalho, não dá para ficar sem. E no fim de semana, no supermercado a conta cada vez engorda mais. E no carrinho, a miscelânea de frutas, verduras, cereais, doces e tudo que é tentação. A coca-cola vem junto, assim como tudo que engorda, que leva para casa a culpa da obesidade, dos avisos que veiculam diante de nossos olhos todos os dias pela dieta saudável, mas que sucumbem diante da tentação das fartas prateleiras dos supermercados e suas delícias sedutoras. E comer vira pecado, trabalhar em dobro gera pais estressados, filho em casa sozinho como menor abandonado e a vida cheia de paz e felicidade virou coisa do passado. Chegar ao fim do dia e ser feliz com a magia das novelas era só no tempo da minha pobre mãe. Hoje, o tema das novelas é escrito com a tragédia social que vemos na vida real e em vídeo tape nos capítulos de todo dia, onde o sangue corre solto, a violência é banalizada, a moralidade pisoteada. Nos intervalos, o noticiário exibe a vergonha nacional de nossa política podre, mostra a nossa decadência econômica e o quanto somos reféns do poder e das falcatruas políticas, e da nossa legislação capenga. E os crimes em série, a homofobia, o preconceito, a violência nas ruas e nas estradas e por aí vai... E a boca amarga, os olhos perdem o brilho diante da TV que nos doutrina, e o semblante de paz e alegria que eu via nos olhos de minha mãe não existe mais nos olhos de mãe alguma diante das novelas. O que existe é o olhar da aflição, do medo, do desespero, da incerteza. E olhar de medo do pai, diante desse mundo em desencanto, em desengano, em desacerto. Medo do futuro incerto, do amanhã cinzento, da vida corrida e cada vez mais sofrida que o espera no dia seguinte no limiar da luta... O que ainda nos consola é que apesar de tantos tropeços, os pais das famílias de hoje vão se aconchegando ao futuro, apesar das intempéries e continuam a história. Guerra e paz, entre vigílias e tréguas, mas vão... E se não trazem mais tanta paz no olhar, ainda nos deixam vislumbrar vestígios de esperança.