CRÔNICAS - Histórias da Caserna IV 21.01.2009
 
Com essa parte encerra-se o compromisso que assumi com o meu neto, como informei no primeiro capítulo. Vale lembrar que esse texto e os demais foram escritos em janeiro de 2009, há oito anos, portanto.
 
 
CRÔNICAS – Histórias da Caserna IV – 21.01.2009
 
Bem, o sargento Demétrio fora o mesmo que nos primeiros dias da apresentação dos recrutas, ainda sem fardamento, resolvera fazer uma seleção. E foi orientando: -- “Quem joga futebol fica à esquerda em coluna por dois, os que sabem escrever e têm letra boa, à direita, o restante em seus lugares”. Neste país quase todo mundo joga bola... Foi a maioria, mas ele chegou para os escribas e falara: -- “Bem, vocês peguem aquelas vassouras, os rodos, baldes e demais materiais e comecem a lavar os sanitários... quero um serviço limpo... o restante, fora de forma”. Pensava eu que os “inteligentes” seriam premiados com algo diferente... Entrei pelo cano.
Pronto, estava eu como sargento de dia à companhia, missão que já havia desempenhado outras vezes, não era novidade para mim. O meu horário de ronda ficara das 24.00 às 02.00 horas, o quartel era muito grande, havia postos de guarda por todos os quatro cantos, os piores e mais distantes eram nas “cavalariças” e nos “paióis”. No lado do clube dos oficiais havia uma piscina com a estátua de um nadador na posição de quem se preparava para o mergulho, meio abaixado. Contam que um soldado, ainda não acostumado, certa vez, assombrado, mandara bala com medo. A sorte dele é que nenhuma delas acertara. Imagine se fosse um agressor!
No horário previsto, o meu antecessor fora me acordar. Preparei-me... Material de serviço, capacete, armamento... e lá vou eu. Resolvi começar dos lugares mais longe para os mais próximos, talvez fosse mais fácil e rápido. Não se poderia era esquecer a senha. Havia boatos de que uma sentinela, certa vez, mandara bala num oficial que não se lembrara do passe. Tudo ia dando certo, afinal “quem é bom já nasce diesel” como dizia o ditado, ronda absolutamente normal. Até que chegara na CC2 (a minha Companhia) e falei para o “plantão do alojamento”: Avança a senha plantão, e isso repeti uma, duas, três, quatro vezes. Ninguém respondia, a tranquilidade era geral, o soldado deveria estar num sono profundo e reparador.
Resolvi aguardar mais um pouco, tentar, poderia ser que estivesse no sanitário. Chamei novamente uma, duas, três vezes e nada. Pronto, terei de registrar a ocorrência no livro lá no comando. Mas por segurança peguei o rádio da companhia e como prova o levei comigo. Dormir em serviço era falta gravíssima. Contam que nos anos trinta, por conta de um episódio desse os comunistas invadiram o quartel e fuzilaram uma porção de militares que dormiam depois de uma jornada de lutas. Isso teria partido de adeptos da facção comunista que habitava em Jaboatão, a filial de Moscou, como era conhecida naquela época. Uma desgraça.
O dia transcorria sem alteração, mas notaram a falta do rádio, que era muito útil nas horas de folgas, nas transmissões de jogos, etc. Contei ao sargento responsável pelo comando o que ocorrera. Foi procurar saber quem estava de plantão no horário de que falei. Não é que o destino apronta certas coisas! Por azar havia sido o Gomes o dorminhoco! Sim, o cara que me acusou de ter queimado o lençol. Tive pena dele... Fora agraciado com oito dias de prisão, ouvi a leitura do boletim. É aquele negócio: “Quem faz aqui paga aqui mesmo”.
           
Os dias passam... Ansioso me encontrava com o regresso da tropa, até que dois dias depois, numa sexta-feira, adentrara ao quartel. O cansaço tomava conta de todos, soldados, sargentos, oficiais, não sobrava ninguém. Dias pesados aqueles, o comando geral ficara deveras impressionado com o que vira. Todos obedeceram à ordem de dispersão com a obrigação de se preparar para a formatura que seria feita em seguida nas próprias companhias.

Companhia formada, e eu dentro. Nessa altura o comandante que havia assumido, capitão Amarante, fez um agradecimento a todos os soldados que direta ou indiretamente colaboraram com os exercícios, e falara: -- “Estão todos dispensados, podem ir pra suas casas, têm oito dias de folga, aproveitem bem... podem voltar já à paisana com todo o material no saco que fora distribuído”. Eu fora premiado com a regalia, gostei das folgas, porém apesar de tudo ficara um pouco triste com a dispensa, a baixa.
O Tenente Ernani, interessado no meu futebol, chegou a me convidar para continuar como “engajado”, mas confesso que não me apetecera a oferta. Tinha um emprego garantido lá fora... Voltaria... Naquele tempo o patrão era obrigado a receber de volta o soldado quando de sua dispensa das fileiras militares. Além do mais a minha decepção não seria jamais apagada de meu coração... Era comigo mesmo e com o oficial que me prejudicara... Hoje eu seria, talvez, um general da reserva, pois com os estudos certamente entraria na escola de oficiais.
Como os demais fui embora folgar. Os dias se passaram assim como que por encanto, rapidamente. Na época visitei o meu patrão, que estava na expectativa de minha reapresentação no emprego, fazia falta, sabia. Mas aí é outra história que ainda terei a chance de contar.
Dia do retorno. Meu velho pai como sempre, me conduzira até o ônibus. Fui mesmo fardado, nem me lembrara de que o comandante autorizara a que fosse como cidadão qualquer. Mas era o último dia, levava minha roupa de civil. Na véspera havia tomado umas cervejas com uns amigos do bairro da Encruzilhada, onde morava, e aquilo me deixara ressacado, até porque nunca mais havia feito uma farra pra valer. O veículo, todavia, não estava bem, aqui e ali um problema, o motorista parava, “quebrava o galho” e seguia. Senti que a viagem ia demorar, poderia chegar atrasado. A verdade era que “cochilava” quase o tempo todo.
Quando da chegada, em cima da hora, surpreendi-me com o sargento da guarda pedindo o meu nome, número e companhia para anotar no seu caderno, do qual já constavam os de alguns soldados. Indaguei do que se tratava. Falou que não sabia de nada, apenas estava cumprindo ordens do Tenente Gilvandro, da CCSR. Depois da parada matinal eu o procurei meio agoniado, pessoalmente, a fim de me cientificar do que ocorrera. Carrancudo, jeito de durão falara que não me comportei de acordo com o regulamento, porquanto não lhe dera o lugar no ônibus, ele viajara em pé. Já estava redigindo a notificação, ocorrência que seria julgada pelo comandante do Regimento.
Voltei para a minha turma, recebi um chamado do capitão Amarante, que já tomara conhecimento do fato. Coisa ruim num instante se espalha, pensei. Expliquei-lhe pormenorizadamente, alegando até que eu estava viajando com muito sono, não dormira na noite anterior, e que não havia visto o tenente, pois claro que cederia o meu lugar, apesar de tudo. Além disso, havia um soldado sentado a minha frente, o que já não seria permitido. Caber-lhe-ia ter cedido a vaga ao oficial, até porque se eu o fizesse a autoridade do tenente poderia resultar abalada (?), eis que o dito soldado ficaria na sua frente.
-- “Isso é falta grave cabo Silva, logo o senhor que goza de bom conceito conosco!”. Capitão, o pior de tudo é que estou de “baixa”, com bom comportamento, e isso poderá tanto afetar a minha fé de ofício como adiar a minha dispensa. – “Vou falar com o comandante do Regimento. Suas explicações têm sentido, mas poderá ser punido, um erro não justifica outro. Não vá embora, aguarde a minha volta”.
Eis que finalmente retornara. Mandou me chamar para comunicar da decisão. – “O comandante, considerando seu bom comportamento, sua colaboração efetiva à companhia, inclusive em exercícios de campo, e levando em conta que o senhor não agira de má-fé, resolveu extinguir o processo, mandando-o para o arquivo”. Fiquei aliviado, agradeci ao chefe e me juntei aos companheiros.
A despedida fora emocionante, muita gente chorando, familiares presentes, clima parecido com o final de uma guerra... A dúvida incutida na cabeça da maioria, sem saber o que fazer, para onde ir. O maior número de soldados que servia em Socorro vinha de todo o interior de Pernambuco, do sertão nem se fala. O retorno as suas plagas seria bom para o aconchego da família, mas e como ganhar dinheiro, trabalhar em quê... Alguns aprenderam a dirigir, a consertar pneus, auxiliares de mecânicos... Teriam mais facilidades... E os outros... A agricultura seria o único remédio.
Guardo boas recordações da vida militar. Muito aprendi, saí do marasmo e depois disso nunca mais me enrolei com coisa alguma... Sempre tinha a solução para qualquer problema que me aparecesse pela frente. O exército é uma escola por onde todo cidadão brasileiro deveria passar, pois lá se aprende, realmente, a ser cidadão de bem e a “defender a pátria”.
 
Semelhanças com nomes e fatos são mera coincidência.
 
Um abraço.
 
Ansilgus
 
ansilgus
Enviado por ansilgus em 12/03/2017
Reeditado em 04/05/2017
Código do texto: T5938326
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