Alforria
Alforria
Agora que descobri que de tão pouco preciso, que posso me satisfazer com um copo de água fresca, uma parada na sombra do fícus da praça no mormaço da tarde, o vento na cara, um dedo de prosa com o aposentado que já era velho quando nasci. Agora que descobri quão agradável pode ser uma caminhada, ainda que longa, ainda que minhas pernas estejam cansadas de um dia inteiro de trabalho. O quanto pode ser apetitosa uma refeição frugal, posta à mesa sem os requintes ostensivos, de altíssimo e desnecessário custo, mas com o prazer de haver sido preparada com os temperos caseiros que eu mesmo cultivei.
Agora que aprendi eu mesmo a cerzir minhas camisas, engraxar meus sapatos velhos até que reflitam, na singeleza de sua insignificância, o brilho singular de meu interior. Agora que me comprazo com a companhia de mim mesmo, depois da fadiga imposta pela minha rotina diária, deitar-me na rede, na minha humilde varanda, lendo sem pressa um bom livro.
Agora que aprendi a olhar a fraqueza humana com olhos de compreensão e que desenvolvi uma espécie de sexto sentido que dota-me de capacidade para depreender das pessoas as intenções ocultas em cada gesto, em cada palavra. Que aprendi a silenciar-me diante das ofensas, das agressões gratuitas, como quem, de tanto reconhecer-se pequeno, vê-se pairando por cima de tais ignobilidades, qual um ínfimo pássaro flanando sobre o pântano.
Agora que desenvolvi uma capacidade incrível de rir das minhas próprias limitações, que fiz a reconfortante constatação de que não tenho que salvar o mundo, aliás, que tamanha presunção era aquela minha! Agora em que alcancei uma espécie de conceito quanto o desejar e o ser capaz de obter. Agora que rasguei meu passaporte, que queimei os velhos projetos, que cancelei minha viagem ao mundo de Alice.
Agora que já vi onde chegaram as conquistas dos grandes impérios, no que deu os feitos dos grandes homens e a glória dos maiores potentados. Que já acompanhei a Ascenção e a decadência de tantos, efêmeros como as bolhas numa água em ebulição. Agora que posso olhar para trás e observar tudo como um aluno que revê com mais atenção as velhas lições, posso finalmente livrar-me das avelhantadas amarras. Como me sinto livre! Quase como o João Feliz daquela estória infantil, para quem o tesouro não representava mais do que um fardo.
Acordo em tempo para a realidade de que posso ser escravo ou senhor de mim mesmo.