CRÔNICAS - Histórias da Caserna III
20.01.2009
 
CRÔNICAS – Histórias da Caserna III – 20.01.2009
 
                
A minha frustração por não ter enveredado pelo caminho da carreira nas forças armadas vinha de três anos antes, quando fizera todos os testes de conhecimentos para ingressar na Escola de Aprendizes Marinheiros, na cidade de Olinda, no grande Recife. Passara em tudo. Um oficial que ficara fiscalizando a sala me dissera: “Rapaz, você sabe demais, escreve bem, não erra nada”! Aquilo fora de bom aprazimento para mim, quase que nem dormi naquele dia. Então chegara a fase dos exames médicos, que sacramentariam meu desejo. Reprovado por problema que não me disseram, mas que julgo foi da pesquisa no sangue, eis que houvera sido portador dias antes de “catapora”, “sarampo” ou “papeira”, não me recordo bem, e isso, segundo dizem, afeta o resultado. Costumo dizer, misturando tudo, que fui acometido de “catarampopeira”, as três duma só vez.
   
Como dizia da última vez, espreitava da varanda da enfermaria a passagem dos valorosos soldados rumo aos campos, que seria o último treinamento, e que decidi dele não participar, chateado, aporrinhado que me sentia com a perda da oportunidade de entrar para a ESA – Escola de Sargento das Armas. As manobras durariam quase uma semana, a verdade é que acertei com o sargento Marinho a minha alta na véspera do retorno, à tarde, a fim de me apresentar à companhia.
         
Acostumado a ir pra casa quase todos os dias ficara meio sem graça ao ter de suportar tanto tempo inativo, fazendo-me de doente, essa é a verdade. Então tive uma ideia. Pedi ao sargento que me deixasse ir pra casa passar uns dias de repouso, estava com saudade da namorada, e meu pai de nada sabia. O sargento ficara bravo, de pronto não concordara, mesmo porque ele estava no batente todos os dias, em face da falta de substitutos. Todos estavam fora, praticamente. “Guerra é guerra”.
 
Pensei em dar uma fugidinha, mas era muito perigoso. Foi quando, de repente ele me procurou e me confidenciou que estava necessitando de mandar deixar uma encomenda em sua casa, ao que me lembre no Edifício Martorelli, em Recife, lá pras bandas da Rua Imperial. Indagou-me se toparia. Fiz-me de difícil pra que ele me adulasse... Caiu na esparrela. -- Claro meu sargento, como negar-lhe um favor se aqui estou são e salvo graças a sua colaboração!  -- “Porra, mas ninguém pode saber de nada, se for pego te vira não me comprometa. Evite, a todo custo que o PP (Pelotão de Polícia da unidade) te prenda, porque é cana”.
         
Abilolado ficara, corri, peguei minha farda, fui à CC2 e deitei-me a passá-la a ferro, sim porque não tendo o “vinco” bem feito não passa no portão das armas, a entrada principal. A alegria era tanta que logo a calça estava “tinindo”. Haveria de sair bem arrumado, dentro dos conformes. Preparado, peguei a encomenda, agora já meio nervoso, e saí. – “Volte logo, disse-me ele”. – Deixe comigo. Quando desci pude notar que o meu sapato estava sujo, opaco, sem brilho. A inspeção não deixaria sair. Safra de manga, debaixo de um pé pude pegar uma casca bem madura e mandei no couro. A tapeação era conhecida, porém remediava.
 
Ficara em dúvida se havia deixado o ferro de passar ligado, dificilmente o faria, fui embora. Na estação de Socorro, onde fica mesmo o quartel, somente as meninas lindas do Colégio da Medalha Milagrosa, conduzido por freiras aonde, aliás, minha esposa estudara, distribuíam o ar de suas graças. Olha, as garotas enchiam os olhos e “davam muita bola” -- como se dizia antigamente -- aos soldados, claro que aos mais graduados. Sei não, mas até hoje penso que a dona Jane se apaixonara pelo cabo Silva desde aqueles tempos...
 
Distraído, quase dava de cara com a patrulha da PP, a sorte foi que o trem estava chegando e me encobriu de seus olhares maldosos. Quem manda não prestar atenção ao serviço, pensara eu em voz alta. Driblei os soldados, entrara no comboio e partira, não dera tempo de fazerem a revista no coletivo, que sufoco!
 
Desci na estação de Edgar Werneck, antiga Areias, em Recife, pois ficaria mais perto da missão, que fora cumprida sem qualquer problema, no mesmo dia, como pedira meu sargento. Agora era ir pra casa e passar uns três dias descansando, nem me lembrava das ampolas restantes da vitamina que tomava, até porque sempre fui ruim de veia e a danada era muito grande, assaz demorada, a aplicação tinha de ser de conformidade com a pulsação.
 
Enquanto isso, a discussão pegava fogo na companhia. O soldado arranchado Gomes, um sujeito grosseiro, de péssimos costumes (comia até as sobras no rancho), também da CC2, que igualmente passara roupa junto comigo, denunciou-me por haver deixado o ferro ligado, resultando na queima do lençol que cobria a mesa para dar mais apoio e mais facilidade ao serviço. Eu de nada sabia, era inocente, apenas havia desconfiado de que isso realmente ocorrera, mas não havia certeza alguma. Sabe o que é uma pessoa despeitada? Pense nele, mas o era porque não conseguira ser aprovado na seleção do curso de cabo, não tinha conhecimentos para isso. Vinha das bandas da “baixa da égua”, um “beradeiro” metido a “arrochado”.
 
Quando retornei ao quartel fui logo levando uma chamada muito forte do sargento Marinho, mas que nada podia fazer, em face de ter culpa no cartório, isto é de haver me pedido pra deixar a tal da encomenda em sua casa, não tinha moral para tanto, estava sob controle. Ele já era sabedor do “quiproquó” e me alertara. Falei logo que ele poderia ser a minha testemunha, pois pra que passar roupa se estava internado na enfermaria? – “É o jeito, disse-me”. Além do mais, tinha a maior certeza do mundo de que o meu tenente Ernani jamais acreditaria naquilo, e mesmo que o fizesse não me imporia punição alguma. Afinal eu mesmo já um pouco relaxado ainda era boa praça. E o futebol: 4 x 0 na CPP2, 3 x 2 na CC1, 5 x 1 na CCSR, 1 x 0 na CPP1, 3 x 1 na CCAC e 1 x 1 contra o time dos oficiais. Fazer gol na nossa zaga era difícil... Quem não se lembra do grande Aldemar, centromédio que jogara no Santa Cruz do Recife... Eu parecia ser o próprio!
 
Por ordem da direção da Sétima Região a soldadesca deveria ficar mais uns quatro a cinco dias nos exercícios, eis que estava prevista a visita de uma autoridade maior do Comando Militar do Quarto Exército e o general fazia questão de mostrar o adestramento das tropas. Sabendo disso, sugeri minha alta e fui atendido.
 
Apresentei-me à companhia, pela qual respondia, precariamente, o primeiro sargento Demétrio, de alto gabarito profissional, já prestes a ir para a reserva. Unidade muito grande, talvez só perdendo em área para o 15º RI, em João Pessoa, fora logo me dizendo, depois de me dar as boas vindas: -- “Cabo, amanhã você estará precariamente de sargento de dia. Como veio da enfermaria vou tentar arranjar um horário não muito pesado de [ronda] pra você. Soldado no quartel não sobra, tem serviço pra todo mundo”.
 
Aí ele me perguntara: -- “Que negócio é esse aqui falando que você deixou o ferro de passar ligado e causara prejuízo de um lençol ao quartel”? Resolvi mudar de tática, e falei a verdade. Realmente sargento, eu estava ocioso na enfermaria e pedi ao seu colega Marinho que me deixasse vir dar um trato na minha farda, pois gosto de andar na linha, no que concordara. Mas não há certeza de que fora eu o culpado. Na dúvida o beneficiário é o réu... Resolva isso pra mim, não gostaria que fosse publicado no boletim interno, na quarta parte. Comigo mesmo ficara matutando... Será que ele vai se lembrar de que passei quase uma semana para organizar e arquivar todos os seus documentos dos últimos cinco anos? – “Pois bem, considere-se como punido verbalmente com três dias de detenção no alojamento”. E arquivara o processo.
 
Vou parar por aqui. Está ficando muito grande essa história. Ah. Grato pelos comentários.
 
Tentando escrever na nova ortografia.
 
Ansilgus
Fonte da foto: Internet/GOOGLE
ansilgus
Enviado por ansilgus em 09/03/2017
Reeditado em 04/05/2017
Código do texto: T5935733
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