ENCOMENDA-SE (uma crônica distópica...)

Pasmem leitores, tem gente vendendo órgãos vitais à luz do dia. Sem cuidado algum, sem higiene ou atestado de procedência. E bem perto daqui.

No país vizinho já é possível comprar, legalmente, órgãos e membros de pessoas falecidas. Por que em Santelmo as coisas acontecem com tamanha lentidão? Nossos hospitais estão abarrotados, nossas delegacias entupidas. A solução, de parte do problema, é boa nova nos jornais do país vizinho.

Aqui, há mais de cinquenta anos, foi aprovada a lei 9256/74 que autoriza a “apropriação dos órgãos de falecidos que não tenham o mesmo sangue”. Eu era menino, mas lembro de ver as pessoas discutirem o assunto. Na época essa coluna era mantida pelo general Villas Boas, que o Diabo o mantenha no inferno. É preciso ser realista: nem os militares nem os liberais fizeram a lei vigorar.

Quanto mais o tempo passa mais deprimente fica a vida em Santelmo. Agora vamos importar rins, fígado e pulmões com preço lá nas alturas. O que adiantou o esforço coletivo para coisificar a Morte, ensinar Schopenhauer na pré-escola, se não usufruirmos das facilidades de ficar mais tempo vivos?

Depois de aprovada no exterior a mesma lei criada aqui, circulam na internet catálogos anunciando a morte mais conveniente como vedete: MORRA E DEIXE VIVER!

Parece piegas, mas funciona. É a pura verdade, muitos querem a passagem, a viagem, o fim. Basta incentivar e veremos os números de óbitos subirem e, nas bolsas de valores em Santelmo, os lucros. Nos classificados o serviço de “limpeza e entrega” sairia mais em conta que uma viagem para o exterior. É só fazer as contas.

Encomendas feitas por e-mail dispensariam a burocracia que emperra as transações comercias. Um sistema prático é o que nos falta. Se a pessoa morre de repente, seus órgãos não se perdem. Se for doente, um atestado acompanha e comprova “órgão em condições de uso”. Mercadoria nas prateleiras, é a lei da oferta e da procura.

Mas não em Santelmo, aqui nada vai para frente.

No país vizinho, os órgãos que não são vendidos são armazenados. Destinam-se para a exportação. Em contrapartida, em Santelmo, continuaremos a importar o que já não serve mais. Se você ou um conhecido seu precisar de um dedo, um punho ou mesmo um antebraço, terá de pagar caro por uma prótese. No país vizinho não, encomenda-se.

Encomenda-se, além da fronteira. Você escolhe a cor da pele e o tipo de sangue antes mesmo da pessoa apagar de vez. Não são poucos os pais que vendem seus filhos na adolescência, que é quando valem mais. Simples, encomenda-se. Enquanto nossos jovens morrem à míngua na fila à espera de um transplante de medula, gente abastada do mundo todo engana a Morte.

Tudo em Santelmo é vergonhoso, até a Morte envergonha-se.

Hoje de manhã passei no plantão da vigésima delegacia, a caminho da redação desse DIÁRIO. Um homem de meia idade fora preso porque comercializava o que ele tem de mais legítimo: seu corpo. Ainda usava o cartaz pendurado no pescoço – VENDO PÂNCREAS EM BOM ESTADO. A crônica dessa semana deveria ser a elegia encomendada, a epopeia dos grandes feitos do nosso primeiro ministro. Mas qual, em Santelmo, acostumamo-nos à falta de Estado e de Órgãos essências.

Ninguém morre menos pobre que isso, tenham um bom dia.

Baltazar

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 09/03/2017
Código do texto: T5935662
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