Assim ou ...nem tanto. 83
Recuou a luz.
Acolho-me a uma penumbra
que me é pele e escudo.
Digo, de memória, as limpas palavras
que se estropiam na minha boca.
Edgardo Xavier.
Assim ou …nem tanto. 88
Escrevia rápido e pensava ainda mais velozmente. Irritava-se quando tardavam as respostas porque o interlocutor era lento ou digitava com dificuldade. Muitas vezes, lia pelo sentido palavras trôpegas, daquelas que nascem tortas e se atropelam por dentro com w y k e outras variantes fora da norma. - Fom dia! gormiste tem? Era ela a fazer o primeiro contacto do dia, a dar-lhe os primeiros nós na conversa que poderia complicar-se mais, tornar-se hermética. Apeteceu-lhe responder: - Gormi. E mu? Espás bim discosta? Seria o começo de uma guerra que, mesmo à distância, nunca se saberia onde os poderia levar e, portanto, em escrita escorreita, elaborou trivialidades e permaneceu em paz. Um estar um tanto desmotivado e ausente que poderia, a qualquer momento, derivar para o desespero. Como podem duas pessoas tão diferentes estar presas uma à outra sem outra razão que transcendesse o sexo? Como se pode ver no outro só o lado erótico e torcer o nariz ao resto, um resto cheio de coisas opostas, conflituosas, toscas? Como pode valer ouro a boca cheia, a alvura dos dentes, o jogo de ancas, a cintura estreita, a pele? Como se pode largar tudo, casamento, família, emprego e assim correr para o abismo, cair nele, amar a queda mesmo odiando o preço? Afastou a angústia e, nervoso, leu: - A que horas queres que passe por aí? Esfou touca por ti, apor!
Edgardo Xavier.
Sintra, 9 de Março de 2017.