Copenhague Zero Grau - Invasões nórdicas
As migrações humanas não mudaram grande coisa nos últimos cinco mil anos no território europeu. Desde a Pré-história que os plantadores de figos e fazedores de vinho e de azeite de todas as terras ao longo do Mediterrâneo têm estado de guarda contra tribos do centro e norte da Europa, cobiçosas de suas terras e bens. Roma, bebezinha ainda, já se defrontava com estrangeiros do Setentrião e a Grécia foi invadida pelos dórios, louros lá de cima, que (a História às vezes se repete) procuraram não se misturar aos nativos, ciosos de sua "superioridade" racial. Enfim, a gente do Mediterrâneo viveu sempre sob a sombra ameaçadora de invasores, cobiçosos daquelas terras férteis e daquelas praias de águas glaucas, ainda não devastadas nem poluídas pelos civilizados modernos.
Pode ser que os que veem a História sob um ponto de vista estritamente econômico achem que vou dizer tolice, mas arrisco mesmo assim. É que existe algo para os do Norte mais importante que tudo para explicar essa ganância toda: o sol, o astro deslumbrante. Viver encarcerado em peles rústicas de animais ou em jaquetas de tecido sintético não parece ter sido nunca o ideal de nossa espécie. O calor, tecidos finos contornando os corpos, realçando as curvas, as gentes nas ruas apregoando peixe e frutas, jovens discutindo um esporte da moda, crianças brincando descalças, as janelas abertas, o vento cumprimentando as cortinas, as gordas donas-de-casa berrando o último disco trágico, os homens jogando cartas como quem joga a existência, isso é que parece mais vida, mais ritmo. E só há um responsável por tudo isso: o sol, o astro deslumbrante. É preciso penar invernos e invernos para se suspirar por ele, para se apaixonar por ele, para cobiçá-lo assim, para armar legiões, exércitos para subjugá-lo.
Fricadela é uma guerreira nórdica de olhos frios e determinados, que passará por cima do meu cadáver para poder viajar nas próximas férias. Quer escapar deste iceberg e dessa agenda implacável de qualquer modo. Luta caratê e judô e, às vezes, confunde a cama e o tatame, usando de golpes libidinosos e carícias desleais para me confundir e convencer a acompanhá-la em mais uma de suas incursões ao Sul. Pacífico que sou, oceano de incompetência marcial, mas curioso o bastante para poder justificar a mim mesmo o fazer parte das legiões de Fricadela, reservo também o meu bilhete com desconto e me alisto como involuntário nessa enésima tentativa de conquistar o Mediterrâneo.
Sentindo-me mercenário e traidor, desembarco junto com as hordas louras em Atenas, Creta, Rodes, Sicília, Mallorca e Algarve, e invadimos hotéis, restaurantes, boates, lojas de lembranças, perturbamos festas tradicionais, acabamos as noites bêbados nos bairros de má fama, loucos para sermos ofendidos, roubados e encontrar um pé de guerra. Nossa invasão dura quinze dias em média, porque esse é o tempo que vale nosso bilhete, esse é o tempo que temos café-da-manhã e almoço incluídos no preço do hotel, esse é tempo que nos basta para abastecer de sol nosso metabolismo e ficarmos morenos-camarão, é o tempo de gastar nossas economias feitas em divisas poderosas. Ao fim do prazo, temos de voltar. Fricadela me mostra, orgulhosa, suas cicatrizes de guerra, as marcas do biquíni. A guerreira terá o que contar quando voltar à Pátria e retomar as atividades no jardim-de-infância onde trabalha. Bebeu de vinhos famosos e saboreou manjares divinos, regados a alho e cebola. Está feliz a guerreira de olhos azuis, frios e determinados. Para o ano, descerá outra vez à Terra, fugindo do Céu da supercivilização durante suas férias regulamentares, escapando de tudo aquilo que lhe cortou as asas e roubou quase todo o tempero que a vida tem, pobre gente de peles alvas e sorrisos bem nutridos, acionados a computador.
(Copenhague, Dinamarca, março/1980)