Inimigo particular
Me incomoda o barulho que fazem os ponteiros desse velho relógio. Estão postos em um centro arredondado de cor de ouro, são pretos e se destacam nessa sala, estrondosa apenas pela manhã. Agora, na calmaria de tantas horas, esses ponteiros me esgotam. Parecem aqui de dentro o sino da catedral lá do centro, que toca a cada meia hora e desperta as andorinhas e as corujas, o padre, a beata e os vizinhos.
Parei para admirá-los e percebi o quão injusto sou com os dois ponteiros maiores, que me avisam todos os dias a hora de parar. Não são eles que gritam a cada segundo. Mas há ali um outro ponteiro, pintado de vermelho brilhante, um pouco desgastado por tantas voltas que já deu, e que insiste em gritar a essa hora que os outros marcam.
Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac...
O café que passei há alguns minutos já esfriou e depois desse gole gelado aumenta ainda mais a minha insatisfação com esse barulhento, impávido, inóspito ponteiro vermelho.
Mas não posso engavetá-lo. Também não posso jogá-lo na parede, destruí-lo em mil pedaços, dar-lhe um banho de água fria, colocá-lo embaixo do colchão. Não posso perdê-lo sem querer em um dia de faxina. Preciso dele. Preciso desses ponteiros que me regem, desse vermelho que me afronta.
Meus olhos já estão cheios de areia e ele não para... não para... Tic-tac. Tic-tac. Tic-Tac... Tic...
Escrevo este texto com os olhos vidrados no relógio à minha frente, encarando-o como um leão a sua presa, o lutador a seu rival, o vilão ao mocinho, torcendo por um final feliz que nunca chega. Mas quando decidi pôr um ponto final nesse duelo e jogar a bandeira branca da derrota, ele silenciou...
Lá no centro o sino da catedral esbraveja, o padre já está de banho tomado. Os carros passam, passarinhos cantam, o galo amanhece seu dono, as crianças vão para a escola e os pais vão trabalhar, o moço da laranja grita a promoção, a vida acorda... E o ponteiro se aquieta.
Perdi o meu tempo planejando pará-lo. Mas na próxima madrugada eu prometo que não deixarei o meu café esfriar.