CRÔNICA - Histórias da caserna II – 18.01.2009
 

CRÔNICA – Histórias da Caserna II - 18.01.2009
 
 
Dando prosseguimento à série iniciada a pedido do meu neto, eis que publico o capítulo II do tema sugerido, que tenta relembrar e reproduzir os nossos tempos nas fileiras do Exército Brasileiro.
 
Meu grande desejo de seguir a carreira militar era patente, não somente porque apreciava as forças armadas como porque estaria com o futuro garantido em temos de emprego e de renda, não que os soldados – aí incluídas todas as graduações – ganhassem rios de dinheiro, mas o suficiente para manter uma família, que antigamente era o anseio de toda a gente de boa educação.

Pois bem, anunciaram as inscrições para a Escola de Sargento das Armas – ESA – em Minas Gerais, ao que parece na cidade de Três Corações, berço do rei Pelé, que houvera despontado para o futebol e ainda menino havia ganhado a copa do mundo de 1958, na Suécia.  Imediatamente providenciei os papéis e fiz a minha matrícula. Pensava comigo mesmo, baixinho: Tudo está dando certo para mim, que coisa boa! As datas das provas já haviam sido anunciadas com o edital, bastava agora meter a “cara” nos livros, pois a concorrência muito grande e o pessoal de bom nível. Detinha o curso industrial básico, equivalente ao ginasial daquele tempo... Sou marceneiro diplomado.

Foi o que fizera. Dali pra frente nada de farrinhas, bailes, praia – namorar podia, claro --, eis que quem quer progredir tem de sacrificar um pouco certas diversões, pois a vida é longa e haverá oportunidades para as brincadeiras. Muitos não pensam assim, há os que preferem fazer tudo o que acham ter direito, mas depois se “ferram”... O tempo passou e “Só Carolina não viu” como diz a música de Chico Buarque.

Os testes seriam realizados mais ou menos no mês de setembro. Se não me falha a memória. Havia muito tempo para me preparar. Quando chegasse o dia estaria na “ponta dos cascos”, como se diz com jogador de futebol em plena forma técnica e física. Preparado para o que desse e viesse, com certeza seria aprovado...nas simulações que fizera sempre aparecia aquele clarão de luz como que abrindo as portas da prosperidade para mim. Merecia!

Naquele tempo os militares não pagavam a passagem do trem. Geralmente eu viajava para o Recife, quando não estava de serviço, e fazia uso das composições da antiga Rede Ferroviária Federal. Mas o retorno deveria ocorrer muito cedinho na manhã seguinte, porquanto não se poderia perder a “parada” matinal. Havia um ônibus que saía da capital para Jaboatão às 06.00 horas e chegava a Socorro em cerca de, no máximo, quarenta minutos, tempo suficiente para cumprir o horário previsto. Meu pai me acordava às 04.00, tomávamos um cafezinho e ele me levava ao ponto de pegar a condução. O “velho” era cuidadoso, se vivo fosse eu lhe beijaria os pés diariamente, com certeza.

Eis que começaram as provas. Primeiro dia tudo dera certo, segundo também, ótimo desempenho, aprovação mais do que garantida. Para o meu desgosto – não sei se fora o destino – no último dia o coletivo atrasara. Foi um atropelo danado, passei pelo portão das armas a todo “vapor”... Cheguei ao rancho antes do início ou melhor da distribuição dos envelopes contendo os testes... Mas o capitão Morgado, encarregado de aplicá-los não me deixara entrar. Ponderei, pedi por tudo, até pelo amor de Deus, porém ele estava irredutível, não acedeu... Ganhei de prêmio uma chamada no boletim concedendo-me oito dias de “revista”, espécie de punição que consistia em estar no quartel impreterivelmente às 21.00 horas para a inspeção noturna.

Cabo que era, certamente em vantagem com candidatos de fora, tinha meio caminho percorrido, mas o sonho fora embora, a decepção com aquela atitude áspera do oficial apagara toda a chama que me envolvia em busca de um futuro melhor, de uma independência financeira e até de esquecimento da infância dura e sofrida por que passara. Carregara frete na feira do Arruda, pescava “siri” na antiga ponte do Brum -- onde até foi erigida uma fortaleza do mesmo nome na época da invasão holandesa -- para ajudar em casa...e outras coisas mais. Por dentro ficara uma mágoa muito grande, uma decepção comigo mesmo, um nó na garganta me perseguia... O que dizer ao meu pai, que me havia aconselhado a não ir pra casa nos dias de prova? Ora, se houve um culpado fora eu... Nunca se devem deixar de lado as sábias orientações daqueles que nos puseram na vida!

Dali pra frente, parece, deixara de ser um soldado exemplar, porque coloquei na cabeça que o capitão tão “Caxias” poderia ter permitido a minha entrada sem qualquer prejuízo, sem quebrar a disciplina... Ledo engano havia a hora de entrada, que era rigorosa, e ele não iria cometer uma indisciplina capitulada no RDE – Regulamento Disciplinar do Exército... Parece que o nome é esse. E é por isso que o conceito dos militares junto à população é muito alto... Organização, hierarquia e disciplina. Aliás, referido oficial era detentor daquilo que seria “síndrome” de guerra, recordações do tempo em que lutara no segundo conflito mundial. Deixemos isso de lado, não convém lembrar.

Finalmente, aproximava-se a época de realização do último exercício, que era uma “marcha” de aproximadamente 24 quilômetros (Ida e volta), petrechos pesados às costas... E eu já sentia antecipadamente todo o sofrimento que teria de enfrentar, ainda mais “machucado” como se encontrava meu coração com a oportunidade perdida, pelo menos em curto prazo. Raciocinei, decidi: Nessa eu não vou de maneira alguma! Teria de “bolar” um plano para me safar daquele sacrifício enorme, magrinho que era... E o peso da mochila me fazia lembrar à penúltima, quando me senti mal e fora socorrido pela ambulância da unidade.

Pois bem, planejei faltar vários dias seguidos ao quartel, deixar a barba crescer, a fim de aparentar alguma doença, porém nunca completar o período de oito dias de ausência, a fim de não ser considerado “desertor”, não pegaria bem. Assim fora feito. No quinto dia, já como “ausente”, recebo em minha casa dois soldados enviados pelo meu “peixe” do futebol, o tenente Ernani, com a missão de me levar de qualquer maneira. Com muito jeito falei para os recrutas que não era plausível um “cabo” ser conduzido por dois militares sem qualquer patente, e os mandei embora, prometendo segui-los logo depois.

Foi o que fizera. Cheguei ao Regimento por volta das dezenove horas, o Ernani estava de oficial de dia. Apresentei-me barbudo, magro (eu realmente não comia muito, sempre fora de beliscar), o que lhe causou espanto! --“Cabo Silva, o que está acontecendo, estou preocupado com você... quer explicar?”, perguntara ele. Falei que estava doente, sentia-me muito fraco, abatido, triste e desanimado; que tentara telefonar, porém não obtivera êxito. Então ele decidira: “Vou mandar baixá-lo ao Hospital Geral imediatamente”. Ponderei, convencendo-o de que ele não sendo médico jamais poderia fazê-lo... No máximo mandar-me à enfermaria do regimento, no que concordara. Claro que eu sabia que sua preocupação também seria com a minha possível ausência da marcha que sairia pela manhã seguinte, pois com ele desbravava os aparentes campos de batalha e era responsável pelas comunicações com outras frentes e comandos militares.

Determinou ao sargento de dia que o fizesse, que me acompanhasse até à enfermaria e me apresentasse ao oficial médico de plantão, o qual não se encontrava presente, fazendo-lhe às vezes o sargento Marinho, que já me conhecia de episódio anterior. E ele foi logo dizendo: --“Cabo, deixa de frescura que você não tem doença alguma, não vou aceitá-lo aqui”. -- Mas o senhor não pode fazer isso, um absurdo, além do mais não é médico para decidir, eu o dissera. Realmente seria uma “mancada”. Com muito jeito sugeri que me passasse uma caixa de “Thiaminose” de 20cc, na veia, vitamina que estava em uso, era a coqueluche, para me fortalecer e submetesse à aprovação da autoridade médica.

Baixei à enfermaria, tudo nos “conformes”. A primeira dose da medicação fora aplicada...puxa quanta demora, se soubesse tinha pedido a de 10cc, mas tive medo de tentar mudar. Certamente levaria uma “chamada” daquelas, já que não poderia “pagar” com “apoio de frente sobre o solo”. A noite passara rapidamente, quando me apercebi já era manhã, e pude observar da varanda o deslocamento da tropa rumo à derradeira atividade de campo, que seria como uma pseudo “guerra”. Dei uma risadinha e balbuciei umas palavras de que não me recordo, mas que certamente não mereceriam ser aqui reproduzidas.

O capítulo já está ficando muito grande. Eu mesmo não gosto de histórias longas. Vou ficando por aqui, porquanto continuarei no próximo episódio, isso com a permissão dos meus prezados leitores.
 
Um abraço. Até o próximo.
Ansilgus
 
ansilgus
Enviado por ansilgus em 06/03/2017
Reeditado em 06/03/2017
Código do texto: T5932585
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