Como entender A Paixão Segundo GH, de Clarice Lispector

Caro amigo ou amiga que tentou, eu sei que você tentou gostar do livro. Não se preocupe, você não é um monstro, um alienado, um ignorante se agora, após a última página pôs no google algo como "como entender Paixão Segundo GH de Clarice Lispector" e caiu aqui, porque você não entendeu baratas, digo, bulhufas. E eu sei que você não leu de mau grado, eu sei que você quis gostar, porque afinal é um clássico absoluto, é um livro que tua professora ama e que se você amar vai poder dizer pra todo mundo que ama Clarice.

Acabou de ler, talvez um pdf, talvez pagando uma grana pesada no sebo do bairro, e agora precisa de uma explicação porque o livro acabou e você nunca viu um romance tão difícil de entender. Mas eu não vou te dar uma explicação do estilo gráficos (daqueles que usam para entender Matrix ou A Origem) eu vou te explicar sem explicar, ok?

Creio que certos livros exigem uma leitura diferenciada. Ulisses e Finnegans Wake são exemplos disso, e Catatau do Leminski para citar um nacional, Paixão Segundo GH também. Um dos pontos que provavelmente te incomodou na leitura foi o fato do romance praticamente não ter enredo, não ter personagens, e por isso pareceu que houve 168 páginas de nada-acontecendo, claro você tem razão, isso é incômodo. Afinal, compramos um romance e sabemos como um romance tem que ser, e não é assim.

Mas o fato é que você como leitor buscou no livro a estrutura tradicional que ele não tem, nem os outros citados antes. Isso é quase um jogo de palavras, Paixão Segundo GH não é um romance em termos de conteúdo, mas é um romance em termos de forma. Tem 168 páginas em prosa, o que a teoria literária não considera nem conto nem novela, por isso o classificamos como romance. Acaba que ele é um romance apenas por isso, mas desde Joice nós sabemos que esse "apenas" já é mais que o suficiente.

É quase como dizer que um quadro cubista não é um bom quadro porque é sem pé nem cabeça, como foi dito pelos críticos da época, que só conheciam a forma clássica de pintar. Paixão segundo GH é um livro cubista, por assim dizer, ou surrealista, ou futurista ou expressionista ou abstrato, ou qualquer outra coisa. Não é um romance se você busca a ideia clássica de um romance, se você o lê na busca de um enredo, de personagens, de nó, de ápice.

Mas é um romance sim.

Tente lê-lo como quem vê uma pintura moderna pela primeira vez, imagine-se como se fosse naquela época, uma pintura abstrata, que não buscava retratar absolutamente nada, quase um concerto em piano sem letra nenhuma mas que ainda assim é tocante. Pois é, você comprou um livro assim.

Não digo que não há um significado no livro, mas procure não procurar, procure ouvir o livro, procure observar o livro como a um quadro que segue um estilo novo. Mais que um estilo, é toda uma forma de fazer diferente, mas que é tão literário quanto as demais.

Aí você vai saber do que se trata, porque só se trata do que a sua própria vivência deduzir. Lembra do Tchaikovsky, Chopin, Debussy, do Overture, do concerto n 1, opus 4, lembra quando você viu aquele bacon todo no quadro de Dalí? É aquilo ali que você verá em Paixão. E só depois que você entender que entender não é assim tão importante, é que você vai começar a entender o livro, a entender o bacon, a entender o piano.

E além disso, paciência, você também tem todo o direito de não gostar, até hoje há quem deteste a arte moderna, não tem problema nenhum.

Mas tente, sem se preocupar com as 168 páginas, leia devagar, em voz alta. Leia a página 100 e depois a 12 e depois a 135. Leia a cena da mão sem se perguntar de quem é a mão. A paixão de Cristo foi tortuosa, a Paixão de GH segue os mesmos passos sabendo que não terá o mesmo resultado, não vai salvar ninguém e talvez chegue ao oposto disso.

Se você tiver tempo tente de novo, leia de novo, e daqui a um ano de novo. Um dia, quando você menos esperar, a barata vai escapar da sua racionalidade por alguma fresta e vai aparecer naquele outro lugar, o quartinho das emoções e você vai estar lá, porque alguém te deixou e você ia arrumar a bagunça e se surpreende porque tudo está arrumado ali dentro, você só achava que quem te deixou te abandonou e bagunçou tudo, e você vai ver a barata, e sem querer vai esmagar a barata no meio, você vai se aproximar porque a angústia da barata lhe é familiar, afinal você foi deixado por alguém com quem voce sempre contou e nunca te passou pela cabeça esse cenário, esse abandono, essa angústia, aí então, sem nojo, sem nada, você vai chegar com o dedo na direção do corpo daquela barata, e aí...

Aí você vai saber o que tem de infinito guardado dentro das 168 páginas desse romance.

J Sant Ana
Enviado por J Sant Ana em 05/03/2017
Reeditado em 05/03/2017
Código do texto: T5931802
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