O HOMEM QUE ODIAVA TATUAGENS

O Homem que Odiava Tatuagens

Numa viagem longa a gente fica torcendo para que o seu vizinho de assento seja uma pessoa agradável. Que seja simpático e que respeite seu sagrado sono, é só me sentar e apertar o cinto de segurança e nem mesmo o avião decola e já estou dormindo. Mas nem tudo é como a gente quer. São Paulo-Belém, três horas de voo, ao meu lado uma moça bonita e ao lado dela um cara esquisito. Ambos cheios de tatuagens, ela enfeitada com piercing no nariz, na orelha e sabe-se lá onde mais, ele além de tatuagens usava brinco numa das orelhas. Que horror, sem dúvida deviam ser artistas mambembes ou cantores de circo, afinal pessoas tatuadas não podem ter empregos normais do tipo carteira assinada, horário a cumprir, cargo de responsabilidade e além de tudo não têm recursos para viajar de avião!

Não tinha jeito, avião lotado, não havia como trocar de lugar. Tentei me entregar a Morfeu, mas aqueles dois vizinhos me perturbavam de verdade. Minhas lembranças mais distantes de uma tatuagem vêm dos tempos da tenra infância, Meus avós moravam no Ipiranga em São Paulo e tinham um vizinho que havia passado uma temporada na penitenciária do estado por ter sido preso com maconha. O tal vizinho, depois de cumprir a pena trouxe consigo tatuada em um dos braços a imagem de Nossa Senhora Aparecida, e no outro uma rosa vermelha bastante colorida. Meus avós incutiram na minha cabeça que tatuagem estava associada à marginalidade e eu assimilei muito bem isso. A tatuagem ficou tatuada em minha mente como símbolo de vagabundos. Tempos depois, já na adolescência, vi um homem de camiseta regata com uma âncora tatuada no antebraço, ele se dizia ex-marinheiro, mas para mim não passava de um beberrão, ou seja, com vinte e tantos anos eu pensava igualzinho aos meus avós com 90! Com o surgimento da Aids no início dos anos 80, passei a odiar tatuagens e tatuados, eram um perigo ambulante.

Aos trinta anos eu tinha certeza de que já sabia tudo nessa vida, a cabeça já estava formatada para o certo e o errado, para a legalidade e moralidade. Eu ria e achava um absurdo ouvir naquela época uma música “Com mais de 30” de autoria dos irmãos Valle cantada por Claudia. A música dizia que não se devia confiar em ninguém com mais de 30 anos. Ora aquilo era um grande absurdo.

Nessa época o que eu mais queria era ascensão profissional e social. Aos poucos fui galgando os degraus, viagens internacionais, escolhia comidas e bebidas mais pelo preço e marca do que pelo sabor. As camisas Raphy já não eram do meu agrado, ainda não havia a Dudalina com famosa flor de lis bordada do lado esquerdo, mas havia Pierre Cardin, Dior, gravatas Hermès a preço de ouro, Boss, Lacoste bordada com o Jacarezinho, Ralph Lauren cuja marca era um jogador de polo montado em seu cavalo, sapatos Prada, relógio Baumer&Mercie,

Claro que eu não tinha tudo isso, mas era minha meta, meu objetivo de vida, aos poucos fui deixando tudo isso para traz, a idade e os tropeços e tombos foram me conscientizando de que aquilo tudo não passava de coisas vazias, sem conteúdo, as roupas valiam por suas etiquetas bordadas, uma completa imbecilidade.

A minha vizinha de assento apesar de tatuada foi educada e me cumprimentou ao se sentar, o “cara” que estava com ela também. Ela perguntou se eu conhecia Belém, respondi que sim, que havia estado lá muitas vezes. Ela então, sem que eu esperasse revelou o porquê de sua viagem, os dois eram médicos e estavam indo para a Amazônia se juntar a outros profissionais voluntários para cuidar de comunidades carentes que viviam na selva. Levavam remédios e materiais cirúrgicos comprados por eles e doados por algumas organizações. Cai na besteira de perguntar quem pagava seus salários, resposta curta; “não ganhamos nada, só comida e moradia precária”

Tentei dormir o resto da viagem, mas não consegui. Há dez mil e quinhentos metros de altura, passei a fazer uma reflexão, uma espécie de balanço da minha vida. Eu estava em um avião indo para o meio de uma selva onde o calor e a umidade são insuportáveis, vestido de terno e gravata e uma camisa tatuada por uma flor de lis, ridículo, Aos poucos fui me conscientizando, tênis Nike e outras vestimentas não tinham valor caso não mostrasse uma etiqueta, ou seja uma tatuagem! O pior de tudo é estar preso a preconceitos idiotas, senti inveja daqueles dois, eram livres pra sonhar e realizar, não iam frequentar restaurantes da moda, mas estariam ao lado da natureza, dos rios, das árvores. Apreciariam frutas que nunca tinha comido, Lembrei-me da música dos irmãos Valle, e percebi que tinham razão, depois dos trinta a gente para de se aventurar, a gente envelhece, e acha que tem razão em tudo. Alguns como eu, julgam que só a tecnologia muda, que todo o resto deve ficar como estávamos com 30 anos. Besteira!, Agora depois dos 60 vejo o quanto perdi de tempo e liberdade correndo atrás de minhas grifes, minhas tatuagens! Cada um deve viver ao seu modo, respeitando apenas às leis naturais da vida, dentro dos limites de cada um. Continuo não sendo fã de tatuagem, ficaria ridículo ter durante a juventude tatuado um cacique em meu peito e, hoje com as rugas e pelancas o cacique estaria parecido com um pajé.

Não odeio mais tatuagem, e nem o modo de pensar dessas pessoas que vivem a liberdade, é hora de voltar a pensar como se tivesse menos de 30!

Laerte Russini
Enviado por Laerte Russini em 04/03/2017
Reeditado em 04/03/2017
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