Uma mãe historiadora



          1. Minha mãe contava bonitas histórias da nossa família. Na sua prodigiosa memória, ela guardava atos e fatos de tudo e de todos, com extraordinária nitidez. Por isso, a partir de determinado momento, passei a chamá-la de historiadora; Maria Luiza, a historiadora.
          2. Ela não escondia sua satisfação em ser chamada assim. E como tal, foi prontamente reconhecida pela parentela e pelos amigos mais próximos. Dúvidas que surgissem, ninguém mais do que ela era capaz de dirimi-las, com segurança e riqueza de detalhes.
          3. Deliciava-me, por exemplo, ouvindo-a contar seu namoro e casamento com meu pai, segundo ela, seu primeiro e único amor.
     Namoro e casamento envolto no romantismo aparentemente inocente e rigorosamente vigiado dos anos 1930. Oh! Como era diferente!!!
          4. Tempos em que, segundo minha historiadora, os namorados e os noivos levavam muito tempo para trocar o primeiro beijo. E quando acontecia, a troca era tão rápido e sutil que poucos testemunhavam.
     À minha indagação se o beijo era na boca, ela reagia com um sonoroso..."o quê?"
          5. Ela me contando, e eu imerso num silêncio monacal, ficava a imaginar: se para um simples beijo exigia-se dos namorados e noivos tanta cautela e discrição, cogitar jamais na perda antecipada da virgindade, praticada com naturalidade nos dias que correm.
          6. Sobre sua lua de mel, Maria Luiza limitava-se a dizer: "Não houve". 
     E acrescentava: "Naquele tempo, a lua de mel não existia"; deixando, porém, transparecer que adoraria tê-la desfrutado, num lugar qualquer do sertão do seu Ceará.
     Mas fazia questão de deixar bem claro que casara virgem; e que coubera ao meu pai guiá-la na liturgia da noite de núpcias.
          7. Nos primeiros dias de março, minha mãe, a historiadora, me chamava para contar, tim-tim por tim-tim, como nascera um dos seus oito filhos, o mais velho, EU...
      Descrevia minunciosamente todo o cenário que os deuses do Olimpo haviam preparado para marcar minha chegada neste mundo.
          8. Já se despedindo da vida - 96 anos - ela me fez esta pergunta, no último 5 de março que passamos juntos: "Você sabe por que você tem tanto medo de relâmpago e trovão?"
          9. Respondi que não. E ela: "Tem uma explicação. Na hora em que você nascia, desabava sobre a cidade uma tempestade, com relâmpagos e trovões. Os para-raios eram os coqueiros mais próximos de casa. Você nasceu assustado".  Acreditei, sem hesitar.
          10. Ainda hoje, apesar de todas as explicações dadas pela Meteorologia, entro em pânico quando o primeiro relâmpago ilumina o céu.
     E quando ouço o trovão, lembro-me de Maria Luiza, que me dizia, na hora das procelas: - "Calma, calma, feliz de quem ouve o trovão!" 
          11. Hoje, 5 de março, estarei bebendo minha cervejinha e agradecendo aos céus por mais um ano de vida.
          Com certeza, perguntarei: Cadê minha mãe, a historiadora, para, mais uma vez, me contar como eu cheguei neste planeta, de todos, talvez, o menos tranquilo.  Ela morreu no dia 21 de fevereiro de 2003.  Fez, portanto, catorze anos, .    

 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 04/03/2017
Reeditado em 16/11/2019
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