A OUTRA FACE DA MOEDA

Nesse dias em que a tecnologia acelera o uso do dinheiro virtual,"dias digitais' em que comprar está ao rápido alcance dos dedos e das teclas, entrar num supermercado para adquirir algo, presencialmente e a dinheiro, decerto que já é coisa bem do passado.

E foi exercitando esse passado “vintage” que minha crônica surgiu , momento em que o caixa, ao ver o extinto papel moeda na minha mão, logo se desesperou, principalmente pela escassez de troco em moedinhas.

O valor da minha compra, hoje nem tão pequeno assim, precificava apenas um cacho das bananas do dia e um pacote dum pãozinho gostoso feito ali, todavia, embora eu tivesse a nota do valor principal, eu ainda precisaria de dez centavos a mais para não gerar troco, e claro, para aliviar o descontentamento flagrante daquele sufocado funcionário frente ao meu arcadismo de consumidor.

Assim, pelo vasto universo interior das bolsas femininas e sob a torcida da fila que começava atrás de mim, procurei insistentemente por ruma moedinha como alguém que procura por uma agulha num palheiro.

Fui vencida pela inacessibilidade dos âmagos femininos...

“Não precisa da moeda não, senhora” me perdoava o caixa daqueles dez centavos irritantes.

Por um instante, e agradecida, me coloquei naquela sua cadeira a me perguntar como seria se mais alguns “dinossauros” resolvessem comprar bananas e pão, sem cartão, e sem ter os famigerados dez centavos.

“Você precisará pagar esse prejuízo no final do seu dia, moço?” perguntei , meio sem graça, ao menino já resignado frente ao "stress" do troco.

Antes que ele me respondesse, uma senhora ali, que atrás de mim sofregamente puxava suas compras acomodadas num desses antigos carrinhos de feira, simpática e observadora, grisalha, franzina e de aparência muito cansada, logo me explicou: " não ô dona!- ele tem que pagar não, eles são "perdoados" de alguns centavos de moeda no fim do dia. Sei disso porque minha filha me falava, foi caixa de supermercado por muitos anos, e hoje, depois de muita luta minha como doméstica, estudou e agora é gerente dum banco "desses famoso".

Ato contínuo , ao ser surpreendida pela doce interação daquele seu breve relato de vida, ainda fui agraciada com um ato da sua gentileza;

"aqui tá a moedinha que farta, ô moça"- disse-me ela amigavelmente entregando os dez centavos ao caixa que asssitia àquela cena inusitada de comprometimento...com o outro.

Éramos "dois outros", -eu e ele- amparados pela graciosidade diante das tantas travas do dia- a- dia.

Pequenos grandes entraves...muitas vezes ao mero alcance da boa vontade das nossas mãos.

Agradecida eu lhe assegurei: "Senhora, muito obrigada mesmo viu, então, estou lhe devendo dez centavos, ok?’

O caixa sorriu largamente.

“Quar moça, dia desses a gente se vê de novo por aí”, me disse ela num tom vivificado, algo profético.

Bem, a vida nunca escreve algo “ por acaso” e eu, confesso, me senti na obrigação de reescrevê-lo ao mundo.

Acionei meu pensamento algo cético a concluir que, num tempo egocêntrico como o de hoje, de tantos reis pelados, larápios de "coroas oxidadas", de tantas e tão pobres realidades de caras maquiadas pelos falsos glamoures virtuais e pelas pseudo bondades , como é bom perceber que ainda há os que enxergam a outra face das moedas...ao vivo e em cores.

Diante de tantos roubos, aqueles dez centavos escreveram um bela fábula...

Surpreendente mesmo é aprender, nos simples flashs do dia, que o olhar acolhedor se desprende donde menos se espera, dos corações mais resilientes,nos milagrosamente humanizados, ainda que tenham pulsado por caminhos algo empedernidos.

Penso ser esse o troco que a vida espera de todos nós.