As aleluias

As aleluias

Estou na caverna que chamo de atelier. Que me acolhe todas as manhãs com o carinho comum e recíproco entre os desprovidos. Muito bom! É um cantinho feio e frequentado por gente estranha, salvo os clientes que são pessoas normais, que vão de crianças e adolescentes com encomendas de trabalhos escolares que hoje em dia podem ser terceirizados, a idosos que pretendem vender a casa e repartir o resultado com os descendentes antes de seguirem sozinhos à triste região das penumbras. Iiiih! Acho que não comecei bem. Vamos começar de novo...

Estou aqui no meu atelier de pintura, num momento de crise política como, nos meus cinquenta anos de vida jamais vi outra igual. Espero pelos clientes que andam arredios... Iiiih! Também não ficou bom.

Vamos lá. Estou aqui no meu atelier e antes que eu possa pensar em algo para fazer me chega o vizinho, feliz da vida com a aproximação das eleições municipais. Tem trinta e seis anos de trabalhos na Prefeitura, analfabeto de pai e mãe, mas pau pra toda obra. Não sei por que meios, mas acredito sinceramente que lícitos, tem patrimônio maior do que o de muito neguinho que anda por aí fazendo roncar sua destoante máquina possante, uma espécie de pecado social que humilha os pobres e faz babarem os supostamente ricos. Ele, o vizinho, vê a minha situação e pergunta por que não faço um tal concurso público. Não sei o que responder a um amigo tão preocupado com meu bem estar. Apenas respondo que não me importo de trabalhar. Eu só queria que não me faltasse trabalho. O trabalho para o qual me preparei.

Aí ele muda o assunto para o da criminalidade. Comenta alguns casos “venéreos” (acho que quis dizer verídicos. Sei lá!) que ocorreram sem o inútil registro de ocorrência. E comenta que os assaltantes em nossa cidade estão mais abundantes do que as aleluias nos bons tempos em que tínhamos ribeirões, açudes e até brejos no nosso então burgo. Por aleluias ele queria referir-se aos exemplares alados dos insetos isópteros ou cupins quando abandonam o ninho para o voo nupcial, após o qual as fêmeas fecundas formam novas colônias. É claro que está tentando arrastar o assunto para estâncias mais amenas. Permaneço mudo aguardando novas investidas. Ele divaga no seu linguajar roceiro por campos e estradas do passado, lembrando as nuvens de tanajuras que depois das primeiras chuvas invadiam nossos terreiros nos fins de tardes.

_ Há quanto tempo, Seu Carlim, que o senhor não vê uma tanajura?

_ Pra ser sincero, meu amigo, há muitos anos que só as vejo pela televisão, nos desfiles de escolas de samba.

Ele ri largamente, exibindo a linda prótese dentária. Eu rio meio frouxamente com saudade de minhas risadas genuínas.

Segue-se um minuto de silêncio e percebo que o matuto filosofa, depois do que ele me olha compenetrado e externa sua reflexão:

_ A diferença, Seu Carlim, é que naquele tempo também haviam os sapos para engolir as aleluias e tanajuras.

_ Num é que é mesmo, sô!

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 02/03/2017
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