Vivendo em Fila...

A garoa caía mansamente sobre os dorsos humanos que ali se abrigavam. Todos encostados ao muro embaixo daquele meretrício e uns nos outros, a buscar ao menos o calor humano, já que outro calor, era impossível de se encontrar na madrugada gelada do inverno. A fila se alongava por uns dois quarterões e a espera, desde a madrugada, fazia todos sofrerem de alguma maneira. Era a fila do ortopedista, e então só por esse motivo, se subentende que todos deveriam sofrer de alguma dor nas articulações ou nos ossos. O frio só agravava estas dores.

Ao longe, umas vinte pessoas a minha frente, um bebê chorava. Seu choro indicava que não deveria ter mais que alguns dias de nascido. Sua mãe, de resguardo, portanto. Um menino acordou com as macacas, como dizia a sua mãe, que já havia lhe dado uns beliscões. A choradeira do moleque não diminuiu a sua vontade de fazer traquinagem. Soltou da mão de sua mãe e saiu correndo. Subiu no muro e ficou pendurado na grade a fazer língua para ela, que cansada, não reagiu e apenas disse entre dentes:

_Vai cair dai, menino e depois não me vem chorar!

Um velho acordou com a gritaria da mulher e do menino e se pôs a resmungar baixinho. Eu mesmo só o ouvi porque estava ao seu lado.

A obesa de vestido justo que estava sentada à uns dez cidadãos, levantou e pediu a outra mulher que vigiasse seu lugar. Compraria algo pra comer, pois nem havia jantado na noite anterior. Prometeu a morena que lhe traria algo. E saiu balançando suas celulites e ancas largas com suas madeixas louras (pintadas) balançando ao vento, provocado pela sua própria velocidade.

Pensei: "Algumas pessoas são movidas a fome."

O cão a seguiu obediente. Nem foi preciso chamar. Desde a noite eu estava querendo saber de quem era aquele cachorro fedorento que estava ali. Até que o animal era bonitinho. A raça acho que era uma mistura de basset Hound com vira-lata. Nas suas orelhas penduradas tinha uma ferida que parecia que era morada de um bicho colocado por alguma varejeira e por ali saia um líquido fedorento. No traseiro do animal não tinha pelos e estava avermelhado. Algumas pessoas nem se esforçaram pra disfarçar e fizeram um muxoxo de alívio com a saída do cão. A mulher virou a esquina e sumiu por alguns minutos.

Um rapaz saiu apressado e ameaçou a todos dizendo:

_Vou comprar meu jornal e ái daquele que ocupar meu lugar!

No vigésimo terceiro lugar estava uma moça pequena e quase desnuda. Não sei como ela estava aguentando de frio.

Ouvi a colega chamá-la pelo nome de Margô. Ela se levantou assim que acordou, e esticou-se todinha ali mesmo. Parecia que estava em alguma academia de Pilates. Quase ouvi a voz da fisioterapeuta dela que deveria lhe dizer : "Cuidado com a coluna menina, Não aumente sua lordose!" Seus cabelos alvoroçados não a ajudaram em nada. Pediu um pente emprestado. Uma mulher que estava sentada a uns 25 cidadãos a frente, ouviu e fez um gesto afirmativo estendendo-lhe um pente. Eu até que tinha um bom pente na bolsa, não ando sem um. Mas não acho correto ficar compartilhando esses objetos. Minha saúde em primeiro lugar.

Após pentear-se, a mulher devolveu o pente a outra sem delongas. Nem sequer agradeceu.

Uma atendente chegou em cima de um salto tão alto que não sei como conseguia se equilibrar. Eu pessoalmente não seria capaz de usar salto dez, ainda mais que no momento minhas dores não me permitiriam. kkkkkk. Passou por todos e não cumprimentou ninguém. Entrou na unidade de atendimento do SUS e foi fechando a porta bem rápido. Pôs-se a falar ao telefone.

Já eram quase sete e meia quando chegou a outra atendente. Veio vestida de enfermeira e deu bom dia a todos bem alegre.

_Bom dia meu povo! To chegando! Logo, logo vocês serão atendidos. Entrou na unidade e a outra foi largando o telefone e se ajeitando na outra cadeira. A cadeira em que ela estava era da recém-chegada.. Juntaram as fichas em branco e abriram a janela maior que dava para as filas.

Todos se levantaram e se organizaram na fila para serem atendidos. Cada um sabia exatamente o seu lugar. Haveria distribuição de senhas. São exatamente 100 senhas para cada especialidade. O nome do médico pode não conferir com o nome da folha que recebemos em nossas cidades nos respectivos AMAs. Chegou a vez do primeiro da fila que foi logo despachado pois não trouxera um documento sequer. Sua dificuldade de andar não comoveu ninguém. Era de se esperar que ele não fosse atendido, afinal sem documentos ninguém pode se identificar. Saiu furioso e chorando, mancando da perna direita. Ali ninguém poderia ter piedade dele. Todos estavam mancando ou com algum problema quase igual. Era um a menos!

Um idoso de aproximadamente 80 anos se apresentou ao guichê. Achei um absurdo o velhinho estar ali sozinho. Sem ninguém da família a acompanhá-lo. Meus pais eram mais novos que ele mas, mesmo assim eu e meus irmãos nunca deixaríamos eles irem ao médico sozinhos. Isso já seria absurdo se ele não fosse aleijado da perna direita. Ele estava devidamente documentado. Deu algumas informações que lhe foram pedidas, recebeu a senha e saiu da fila., depois de ouvir da moça de branco a frase que ela repetia a cada um:

_É só aguardar.

O próximo da fila era um senhor na faixa etária dos setenta anos de idade. Entregou os documentos e não falou nada. A moça do guichê demorou mas descobriu que ele não a estava ouvindo. Era deficiente auditivo. Não conhecia a linguagem de libras e isto dificultou um pouco a tomada de informações. Chamaram um colega que conhecia o homem e as informações foram devidamente preenchidas. Ele saiu da fila.

Uma confusão se formou do outro lado da rua. Um bêbado acabara de ser atropelado por uma moto. Todos comentavam o estado do bêbado aquela hora da manhã. Ninguém questionou o motoqueiro.

E a fila continuava andando.

Um bebê encheu a frauda e gerou um mal-estar entre as pessoas da fila. A mãe não queria ir trocar o bebê para não perder a sua vez na fila. Começaram uma discussão. Uns falavam que ela era muito porca, outros reclamavam do mau cheiro, outros ainda defendiam a mulher e o bebê. Alguém perguntou se eles nunca foram crianças. E outros se zangavam mas ficavam calados.

A mulher ficou muda mas se manteve firme ali.

Um cavalheiro que estava no 12 lugar na fila se ofereceu pra ceder o lugar trocando de lugar com ela. Feita a ficha da mulher ela e o bebê saíram em busca de um fraldário, se é que havia um por ali. Minha dúvida se confirmou. Ali não havia fraldário e ela teve que lavar o bebê em uma pia de banheiro nada adequada para essa função.

Eu estava no 15º lugar na fila. Há pelo menos 2 anos aquela fila me era familiar. Vinha até ali com muita frequência. Desde que quebrei o braço num acidente de trabalho. Meu chefe não quer aceitar, mas o médico diz que não estou preparado pra voltar ao trabalho. E assim tenho que voltar aqui sempre. Acordo sempre as 3 horas da manhã e pego o ônibus da prefeitura que sai de onde eu moro as 3 e 50 h. Chegamos em Vitória as 5:00 horas da manhã. Só consegui um bom lugar na fila porque arranjei um amigo na fila que guarda lugar pra mim. Toda vez que eu venho, ligo pra ele e a gente marca de vir juntos. Quase sempre conseguimos. O AMA tenta marcar na data que informo. Lá tem umas meninas bem legais. Mas nem sempre coincide com o dia dele. Mesmo assim ele marca a ficha pra mim e guarda meu lugar até eu chegar. Nunca vou poder agradecê-lo o suficiente. Aqui sempre existem anjos como ele. São amigos de verdade pois não tem jogo de interesse que envolva dinheiro. Somos todos pobres e um ajuda o outro. O ônibus vai deixando uns aqui, outros ali. Eu fiquei aqui neste lugar. cheguei eram quase oito horas, mas sei que só iremos embora no fim da noite como sempre. A coisa complica na hora que a fome começa a morder o estômago é que estou parado e o dinheiro do auxilio do INSS por doença é pouco e não pra comer aqui. Servem um pão com café de manhã,gratuito e a gente tem que se virar durante o dia. Tem um homem que trás marmitas quentes todos os dias. Ele é de uma igreja daqui e a gente come de graça. Graças a Deus! Mas tem que ficar esperto pois as quentinhas se acabam num zástrás.

São 9:30 h agora. Os médicos já começaram a atender. Fomos levados em grupos de dez a uma outra anti sala. Como o meu médico deve ser especialista em nervos atrofiados, levei a pior hoje. Depois de chamarem cinco pessoas, começando as 9 horas, a atendente veio avisar que eu e mais outros que precisávamos desta especialidade não seríamos atendidos pois o médico não veio porque foi a um congresso. Dia perdido. Nada resolvido, sai dali desiludido.

Nem sempre foi assim, no entanto. Já saí dali com problemas resolvidos. Fui bem atendida e operada do joelho. Tive caso resolvido quando estive com L.E.R. (Lesão do Esforço Repetitivo) e também fui bem atendida nas vezes que tenho vindo até aqui para passar pela perícia médica e tentar voltar ao trabalho.

Com sono, com a certeza de que só irei embora a noite. Sentei no portão de entrada e fiquei ali olhando o movimento. Na hora do almoço esperei pelo doador de quentinhas mas ele não apareceu hoje. Disseram que as quentinhas só foram suficientes pro outro hospital.

Com fome, cansado e enjoado de esperar, entrei no ônibus que chegou pra me buscar as 18 horas e dez minutos. Doido pra chegar em casa e comer meu feijão com arroz, que é só o que deve ter em casa me esperando. O ônibus acelerou e seguiu até o município da Serra, e eu cheguei a pensar que logo estaria em casa, quando de repente, pra meu desgosto, o pneu do ônibus furou. Depois de algumas ligações de celular a nossa responsável avisou que a gente teria que passar a noite ali mesmo. O único ônibus disponível pra pegar a gente estava sem combustível e com pneu careca. Teríamos que esperar até o setor de transportes da prefeitura abrir no outro dia para nos atender. Eles nos mandariam o ônibus escolar. Esse ônibus teria que buscar alunos no interior depois viria nos buscar.

Dormimos sentados nas cadeiras retas sem conforto e a maioria com fome. No outro dia, já era dez horas, e quem chegou foi um borracheiro acompanhado do chefe dos transportes pra trocar o pneu furado. O outro motorista disse que não viria buscar ninguém, pois tinha um compromisso com as crianças da escola que tinha que levar pra casa. Só havia sido avisado aquela hora e chegaria muito atrasado na escola.

Entramos no ônibus as 11 horas rumo a nossa cidade. Chegamos duas horas depois. Aproximadamente às 2 horas da tarde. Cada um seguiu seu destino rumo a sua casa. Matei a fome com a pouca comida que tinha no fogão. Um pouco de arroz e feijão e um ovo que fritei.

Amanhã é outro dia, cada dia é só uma sucessão de outras filas e semana que vem tem mais, já que eu não consegui ser atendido pelo médico. Isso se o AMA conseguir marcar pra mim, já que as vezes demora até meses pra conseguir marcar. É por isso que vivemos andando em fila.

As vezes dá um desânimo... E depois dizem que pobre reclama de barriga cheia. Ái ái, ....Só se for cheia de lombriga.

Nilma Rosa Lima
Enviado por Nilma Rosa Lima em 02/03/2017
Reeditado em 20/04/2017
Código do texto: T5928360
Classificação de conteúdo: seguro