Copenhague Zero Grau - Atestado de Vida para D. Elsa
Atestado de Vida para D. Elsa
Cara D. Elsa,
Da próxima vez que nos pedir o atestado de vida costumeiro, mande-nos um documento da polícia do lugar onde mora, atestando que a senhora realmente vive. Como a gente pode ter certeza? Como podemos atestar a sua VIDA? Já pensou se a senhora estiver morta, e nós estivermos atestando que a senhora vive? Claro que não queremos correr este risco, temos que bancar os vivos. A senhora há de convir que, tendo nascido em 1899, é bem provável que a senhora morra a qualquer momento, não é verdade? É duro, mas é bastante sensato o que digo, não é? Quem sabe se, neste instante, a senhora já não viva? Quem sabe, tendo apenas acabado de telefonar anteontem, não lhe veio a Desejada das Gentes e a transportou em seu coche cor de cinza... Afinal de contas, a senhora é de 1899, está fora do século XX, no Brasil há pouca gente da primeira e segunda dezena desta centúria ainda recebendo pensão do Estado. Ninguém pode afirmar, portanto, que a senhora esteja viva agora... E eu, como sou um pouco romântico, especularia ainda sobre se a senhora teria vivido alguma vez. A senhora sabe como é, esse negócio de conotação e denotação das palavras, não é?
Por acaso, viver é esperar pela aposentadoria, enquanto se acumulam trastes e se economizam emoções? Não sei como era o seu país antes das Guerras, talvez a sua geração não fosse tão medrosa e tão condicionada como as de hoje, não tendo filhos com medo de um cataclismo nuclear, ainda se podiam esticar os horizontes, ainda havia o que fazer e existia esperança. De qualquer maneira, continua no ar a pergunta que não clama necessariamente por resposta: teria a senhora vivido alguma vez?
Chega de especulações. Filosofias, diz minha tia torta, não enchem a pança. Voltemos ao seu atestado. Desta vez, confio na voz que ouvi e lhe atesto a vida. Confio, também, que a tal voz ainda exista, produzida por cordas vocais que ainda vibram. E lhe passamos, fazendo fé na voz que ouvimos, o presente Atestado de Vida, para efeito de receber pensão no Brasil. Vai, de volta, o troco de dois e vinte em selos, que a senhora pode usar numa eventual próxima carta. Assino em público e raso.
E, para terminar, um abraço de seu neto do Século XX.
(Copenhague, Dinamarca, 06/08/1979)