Uma história de antanho

Isto tem um ponto no passado, lá pelos idos e sepultados do século XIX, tempo de engenhos e latifúndios, de senhores e de servos. Uma “família” sobre a qual não se sabe e nem se quer saber das origens, vivia, como diz a letra de uma canção, “apertada num barraco, na beira da linha”. Migrando, depois, para uma cidade, uma capital não muito evoluída, aquela “família” “sonhava com um berço de ouro, fralda de florzinha, mas “não sabia dos problemas que a família tinha”. Entre avós, pais, filhos, irmãos, irmãs, sobrinhos, sobrinhas, tias, tios, primos e primas, aquele monte de gente morava apinhada em pequenas casas alugadas na periferia daquela capital. Havia, no grupo, mesmo assim, uma espécie de líder agregador e que lutava com dentes, unhas e o corpo inteiro para vencer as dificuldades então maiores do que as do povoado onde viveram. Voltar para lá ninguém queria, até um entre eles dizia preferir ser mendigo. Detestavam patrões, mas no fundo no fundo o sonho de cada um era ser patrão, rei ou algo parecido. O tempo foi escoando pelos verões, invernos, primaveras e a liderança tirando da própria boca e da dos filhos para compor um esforço no sentido coletivo, social. A paisagem daquela pequena comunidade foi se modificando de alguma maneira, uns quiseram estudar, outros se ocupavam de vendas, pelo menos de galinhas e ovos. Horas havia em que comiam as galinhas e também os ovos. Horas havia em que comiam clara de ovo batida com farinha e açúcar. Entre algumas sabedorias próprias dos que sofrem na pele os males sociais, foram quase todos, digamos que mais de noventa por cento, se organizando. A liderança, de tanto renunciar em favor dos seus, entrou em uma situação para abaixo da linha da pobreza. Tentava junto a prefeitos, pedindo cimento, tijolos, telhas e empregos. Um prefeito dava, outro enganava. E assim, de prefeito em prefeito e de engano em engano, a vida foi se dirigindo para a construção de uma nova realidade. A liderança faleceu, ali sempre firme e colocando todos acima de si e dos seus mais próximos, os filhos. Bom dizer que os filhos da liderança pouco ou mesmo nada conseguiram na vida, talvez porque os outros parentes gozassem sempre de prioridades. Eis que, passado mais um tanto de anos, aqueles moradores apertados na beira da linha já se encontravam morando de frente para o mar, estudados, formados, como se diz popularmente, bem de vida. O passado no povoado estava definitivamente ido, morto, cremado e as cinzas espalhadas não se sabe onde. Entre os filhos da liderança há um que passa sérios desconfortos, constrangimentos e penúrias. Entretanto, “rei morto, rei posto”, ninguém entre os bem-sucedidos presta sequer atenção ao componente “familiar” lá dos apertos da beira da linha.