ALHEIOS NA TARDE


(22/08/2011)


Eu a avistei saindo do casarão ,na curva da estrada.
Magra,alta,tinha um andar estranho.
Vestia calça de cor escura , blusa num tom mais claro que a calça.O vento cortante da tarde obrigava-lhe a cruzar os braços,assim ,com aquele andar de garça, seguia à minha frente feito um vulto misterioso.
Reinava no conhecido trecho de minhas caminhadas a pasmaceira de sempre.O moinho de cereais em antiga edificação de madeira,imponente ,lançando aquele seu olhar empoeirado pelas redondezas,algazarra da piazada no campinho de futebol ,angolistas e perus em alvoroço no quintal da nona italiana,o simpático casal gorducho da esquina, (ele,mulato.Ela,polaca dourada) sempre acenando amistosamente,sem que ao menos nos conheçamos,rsrs...
Volteava pelo ar o arremedo de uma voz de mulher.Embarcada na aragem fria,ia-se chegando de longe,muito longe...Quase incompreensível.
Do pouco que meus ouvidos conseguiam captar ,a palavra "novena" soava com alguma nitidez,no instante em que coincidentemente tangiam os sinos da capela.
E a moça de andar desengonçado seguia à minha frente.
Um manto de fumaça e vapor erguia-se do vale,agasalhando docemente o casario encolhido entre as colinas.
As primeiras luzes acesas vazantes pelas janelas,sugeriam-me olhares neblinados de uma estranha nostalgia. Éramos,ela e eu,dois perfis na tarde que esmorecia.
[O dela,esguio.O meu,nem tanto]
Próximo à primeira esquina,quase ao final da rua dos Tres Pinheiros,ela sentara-se no barranco à beira da estrada.O cenário de fundo era de um bucolismo cativante.A ladeira deserta abrindo caminho entre casas antigas,algumas árvores despidas ,sempre vivas amarelando cores pelos entulhos,uma cabra albergando-se na carcaça de um “GMC” relegado à ferrugem ...Touceiras de mamonas ,urtigas ,e uma poluente garrafa descartável,conferindo ares de modernidade ao conjunto.
Sobressaindo-se à esse plano de fundo a moça de preto,sentada no barranco,bebia os segredos da tarde.
O rosto entre as mãos, cabeça inclinada,pensativa...Pendiam-lhe os cabelos castanhos e sua face me era um enigma.
["A garça" travestia-se agora numa visível indiferença alheia à tarde que morria]
Tentando adivinhar-lhe os devaneios,cruzei por ela.Em vão fui criando enredo para o que imaginava,"uma solidão sentada à beira do caminho".
As primeiras estrelas insinuavam-me a noite que chegava.
Contornei a derradeira curva atrás da estação desativada.Borradas de pichações,o que ainda restara das paredes dava o tom de desolação ao ambiente.
Veio-me à lembrança aquele senhor “enigmático” que residia um pouco adiante.A janela de sua casa juntava-se agora aos olhos neblinados do vale silencioso.
E a moça , “enigmática” , que deixei pra trás?!
Que sina a minha! Refleti com meus botões.Estar sempre deparando-me com enigmas.Ou seriam estes,tão somente frutos de minhas fantasias? Sabe-se lá!
Pelo sim,pelo não,era preciso seguir a caminhada.
No charco,coaxavam os sapos o desencanto de suas feiuras.Nada poderia ser mais melancólico que o abandono daqueles ecos embrenhando-se noite à dentro numa desoladora espera .Parecia uma súplica à que margaridas se abrissem para setembro em beijos de primavera capazes de transforma-los em príncipes.
Por instantes senti coaxar em meu peito um sapo reflexivo.O sapo do travo das lembranças,das ilusões,dos segredos bem guardados. Assim,solidários em nossos coaxares ,retomei a cadência de minha andança,sonhando margaridas iguais.
Brotava-me , tênue ,a esperança de que elas ainda fariam setembros e, em beijos de flor,haveriam de quebrar nossos feitiços ou encantos.

Joel Gomes Teixeira

TEXTO  REEDITADO
Preservados os comentários  ao texto  anterior:


31/03/2016 22:20 - Ronaldo [não autenticado]
Uma crônica com tons poéticos! Bem instigante. Ótimas imagens.
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31/03/2016 22:16 - Dartagnan Ferraz
Iatiense, que caminhada arretada e você com a lupa do devaneio, um craque. Olha, fazia uns 50 anosque não ouvia falar num GMC, um primo meu tinha um, gnhou muito dionheiro com ele, tropcou no Chevrolet e se arrependeu. Ah, se eu pudesse dar umas caminhadas, levaria um bloquinho. Abraço.
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31/03/2016 20:13 - Marcia Portella
Fiz a caminhada visualizando cada canto do caminho encantada...