Sintomas de viver
Já tive dias de odiar a medicina, talvez pelo fato de ela me negar alguns dos prazeres da vida, ou mesmo pela insistente mania que ela tem de sugar como inteiro. Aliás, acho que esse problema de ser profundo me persegue como carma ou dádiva, gosto de ler e entendo, e bem lá no fundo rachado de meu coração lembro que a vida só se dá pra quem se deu, né? Mas sim, a medicina sempre foi dos sonhos o mais latente, aquela vontade incontrolável de poder ser alguém, de sair pelo mundo, e não vejo isso como grandiosidade, mas como necessidade de quem não quer se limitar a suas bolhas, sair por aí com a medicina no bolso, o coração como norte e o nariz, vermelho, vai ver que por vergonha ou choros de noites solitárias, mas a medicina me fez querer sair.
Não vejo a grandiosidade de um jaleco nem a mágica dos estetoscópios caros, mas vejo mesmo na medicina o eterno medo de não encontrar, a si mesmo, a pessoa, o paciente, o outro, a angústia. Anseio pelo dia que eu vou ser pequeno o suficiente para entender que a medicina não é feita de remédios ou prescrições, mas de olhares sinceros, de humanos falidos, de lágrimas, de doenças, sejam elas nossas ou deles, a questão é empatia básica por estar diante de um sofrimento que não é meu, mas que eu sei dimensionar e apurar e sentirei até o ponto de não me aguentar e fazer de tudo para que se resolva. Acho que ser médico dói, justifica as olheiras daqueles que rogam pelo sono tranquilo, adoça o tal suor dos inocentes, dignifica a luta perdida, mas sempre aguerrida de ser mais do que um humano, reconhecendo os tropeços, erros e a vulnerabilidade em ser gente antes de vestir branco.
O academicismo, infelizmente, nunca poderá lidar com as matizes torpes de uma humanidade reprimida e quiçá indesejada no ofício de ser médico. Após quase dois anos de curso tive a honra de aprender um pouco, ou melhor, sentir um pouco do que é cuidar, mas confesso cabisbaixo que somente o fiz pois busquei o tal currículo oculto, aquele que somente eu e minhas trombadas e acertos podem construir, e ainda assim senti de falta de poder olhar alguém, afinal de contas, mesmo com medo, ansioso e cansado, todos os estudos tresloucados de um estudantes de medicina serão guardados como ferramenta de uma profissão que exigirá vulnerabilidade. Pra mim, medicina é, antes de tudo, um cruzar de olhares, um sentir de realidades, um transplante de corações, uma nudez de almas, a definição prática de empatia.
Dotado de certa surpresa advinda de um rompante prático em meio às incontáveis aulas e discursos do início da faculdade, o 4º período apresenta uma atividade de conversa com o paciente, que agora e sempre chamarei de pessoa, essa seria nossa chance de poder ser humano, ouvir, olhar, encontrar, e também ser médico. O ambulatório de Cirurgia tinha lá meus receios, as histórias por vezes blindam nossas experiências e torna-se inevitável optar pela seriedade e o tecnicismo quando estamos sendo testados. Ali não fui eu, foi Gabriel, aluno de Medicina do 4º período, aquele que decorou todo um roteiro de perguntas e agora com sua bata suada e suas mãos geladas tinha como único objetivo entrevistar um tal paciente.
E ainda não consigo entender, vai além de minha racionalidade parca e transborda minha prolixidade, mas antes que eu pudesse disparar minha metralhadora de formalidades e questionamentos olhei para a pessoa, Seu Edmar, e foi só isso, ali estava Gabriel, 20 anos, cansado, noites mal dormidas, palhaço, praticante da religião amor, aquele mesmo que sonhou em ser humano e sentir com alguém, bata suada, mãos geladas e “Muito boa noite, Seu Edmar”! Ele que tinha motivos irrelevantes para o relato para estar triste, depressivo e mesmo ranzinza, mas decidiu oferecer seu sorriso e cordialidade, contando de sua infância como quem perpassa um relicário de sorrisos, peripécias e joelhos ralados.
De fato o tal roteiro retornara à minha mente, agora não mais como meta calculista e ponto de chegada na minha corrida contra a pressão, mas sim como alerta da razão de que eu aproveitasse a caminhada junto a Sr Edmar, pois uma hora nossa conversa teria fim. E seguindo um esquema pronto perguntei a ele se sentia algo na cabeça, com ar de obviedade ele diz que sim, as dores existem, mas chegam somente ao final do mês, junto com todas as contas a pagar. Sim, para a medicina talvez não tenha relevância, mas foi crucial perceber que existe em todos nós uma certa dor de cabeça, e que essa não é paciente ou estudante de medicina, essa é nossa, minha e de Seu Edmar.
Como que em uma resposta a toda minha angústia com o dilema da vida e da morte com a medicina, deve-se fazer de tudo para que a saúde prevaleça, mas e quando a gente perder? Pode soar louco ou fraco, pouco importa, eu aprendi a chorar. Continuando nossas perguntas, quis saber de Seu Edmar como vai seu coração, e nesse instante nosso olhar fez deixar de lado qualquer adversidade, ele como quem escancarasse meus olhos até chegar onde guardo as mais bonitas lições de vida fitou meu cenho cansado, mas extremamente honrado e disse: “Coração? Ah, meu filho, esse, às vezes, bate uma dor danada, isso é vontade de viver”. Doeu, eu perdi, embora a bata me colocasse como acadêmico, mesmo que no quarto estivessem mais 4 amigos e um monitor para me lembrar da formalidade do que fazemos, eu chorei, e acho que nenhum deles percebeu, mas Seu Edmar no caminho de me ensinar sobre seu coração chegou a meu eu cansado, cheio de problemas, suado, inseguro, vulnerável e me fez sentir muita dor no coração, mas não tem problema, aprendi que isso é vontade de viver, e mais ainda, aquela lágrima tímida é um conhecido sinal de quem vai perder muito, mas que ama encontrar e puder ajudar e ser ajudado por pessoas como Seu Edmar. Muito obrigado, encontro, em minha vida quero ser pequeno para sentir mais.
Gabriel Melo, 27 de Fevereiro de 2017